Na terceira parte desta curta série sobre Macaíba, em celebração dos seus 145 anos, vamos de poesia à culinária, com textos postados em 2006 na edição 18 da Revista Preá. Matérias de autoria deste editor.
Contos e prantos do poeta
Se as dores da alma machucam lembranças ou atormentam os dias, também podem ser compreendidas como experiência de interiorização profunda e fértil; um estado afetivo propício aos seres que tenham a intenção de entender e modificar o mundo e a si mesmo. O poeta João Batista Xavier de Sousa, 65 anos, é quase cego. Enxerga com 20% da capacidade em um dos olhos. Começou a perder a visão por causa de uma decepção. Isso aos 52 anos. Desde então começou a escrever compulsivamente. Tem quatro livros publicados, sendo três de poesia e um mais teórico, sobre educação. É que o poeta assumiu a secretaria de Educação de Macaíba em três gestões, e por décadas trabalhou junto às escolas ou na área pedagógica.
João Batista nasceu mesmo foi em Natal. Mas, com meses de vida foi morar em um pequeno povoado às margens do Rio Jundiaí, hoje distrito de Macaíba. Já aos 5 anos migrou para Mangabeira, também distrito do município. Se considera macaibense. E para ele é o que importa. Aliás, guarda com orgulho o título de cidadão macaibense. Em função da profissão do pai delegado, rodou municípios ainda na infância. Mas voltou a Mangabeira em 1958, aos 17 anos e percorreu toda a fase adulta. Se formou em História pela UFRN e logo iniciou-se na área de educação, uma de suas paixões e por onde dedicou décadas de vida. É que o poeta disse ter lembranças ressentidas do seu pai analfabeto, zombado por muitos. E ele não quis repetir esse desprestígio e estudou para vencer este trauma.
“A família é a fonte. A escola é o templo. Da família se nasce. No templo se cresce”. A frase veio de pronto, mas outras mais, articuladas em forma de tese estão reunidas no livro Uma escola possível, 2004. Essa escola ideal, mais humana, o professor ainda espera ver. Em três gestões como secretário de educação, não conseguiu concretizar seu ideal de modificar o atual modelo de escola, centrado no tecnicismo. Mas foi quando se aposentou, forçosamente por causa da pouca visão, que a poesia aflorou mais intensamente em sua alma. Seu primeiro livro reunindo dezenas de seus trabalhos foi Em Canto, 1997. Em seguida veio Pedaços Inteiros, 2004, de poemas recheados de ausências, a denotar um vazio na alma.
No ano seguinte é que o autor se debruça de vez numa melancolia mais intensa. O livro Cantos e Prantos retrata um homem desenganado da vida. Os títulos de alguns poemas por si só denunciam alguma tristeza interior: “Desgosto”, “Desencanto”, “Engano”, “Desequilíbrio”… Em uma passagem, o autor assim escreve sobre a Prepotência:
Face rude…
Palavra irônica
Favor estratégico
Falso enérgico
Dança cômica
É assim:
Prepotente…
Inútil, aparente
– meio sem fim
Presença sem vida
Ladravaz da harmonia
Angústia e agonia
Esperando guarida.
No autógrafo do livro, a recomendação de João Batista Xavier deixa entrever um pedido que parece requerido por uma alma inquieta e incompreendida: “Cantai os meus cantos e compreendei os meus prantos, para que o espírito se alegre e a calma vos seja mais luminosa”.
90 anos adoçando o paladar do potiguar
Um dos poucos engenhos ainda em atividade no estado está localizado na comunidade de Japecanga, em Macaíba. O Engenho São João há mais de 90 anos produz rapadura artesanal. Nunca mudou de produto. A modificação foi sutil. O processo de moenda da cana-de-açucar, antes feito em caldeira ou mesmo à tração animal é hoje elétrico. De resto, tudo continua como nos tempos da Macaíba aristocrata.
A cana é colhida ali mesmo no vale do Japecanga, na propriedade de Luiz Antônio Gomes, herdeiro contínuo do engenho de seus antepassados. Seu avô, disse ele, era latifundiário na região. Se antes os empregados no engenho eram muitos, hoje são dez. Enquanto uns decepam a cana outros colocam o bago na moenda. O caldo da cana desce direto para os tachos, onde é fervido a fogo alto. Quando feito mel a garapa é levada à gamela para ser mexida, até coalhar. Depois é só colocar na fôrma e deixar esfriar.
A produção é de dois mil tabletes de 450 gramas de rapadura ao dia. Luiz Antônio vende principalmente para os interiores do estado e Natal. No dia da reportagem, o Engenho passava por uma reforma. É comum, segundo Luiz Antônio, devido o fogo alto, diário, durante 24 horas nos tachos e próximo às paredes antigas do local. Todo ano se faz uma reforma. Mas o processo de produção da rapadura permanece. “Não tem como mudar muita coisa. É um processo natural de produção: engrossar a cana até dar o ponto. É como pirão”.
A receita de sururu de Dona Nair
No distrito de Mangabeira, na entrada de Macaíba e à margem da BR-304 ainda se prova o melhor do sururu da região. Nair Teixeira de Souza, 83, prepara com gosto. Faz questão de oferecer às visitas um prato farto. E exibe com orgulho. Ver a satisfação da visita em provar do sururu parece trazer de volta as lembranças de menina, de horas, manhãs nas beiradas do rio Jundiaí a pescar o sururu para cozinhar para a família.
A fartura parece mesmo ser coisa de antigamente. Dona Nair reclama que os viveiros de camarão estão “escondendo” o sururu. “Está difícil de encontrar”. E quem sofre é dona Antônia, que tem “pra lá de 90 anos”. Quando vem visita, dona Nair encomenda antecipadamente o sururu a ela. E lá vai dona Antônia, carregando o peso da idade, pescar o molusco. Prática de uns 60 anos.
Acometida de virose – essas gripes medonhas do tempo-hoje – a muito que dona Antônia não dá as caras pela casa de dona Nair. Normalmente ela chega com latas de querosene cheias de sururu. Mas Dona Nair explica em detalhes e em bom som como se dá a pesca: “Quando vai chegando perto o bicho faz assim ó: tac, tac. É o sinal. A pontinha já fica do lado de fora. Tem que ser em maré baixa pra ver. Aí é só botar o dedo dentro da lama e tirar o sururu”.
O sururu é colocado numa vasilha e esquentado do jeito que está. “O caldo chega fica azul”. Depois é tirar do casco, coloca o leite de coco, o tomate, a cebola e o pimentão. Coloca no fogo novamente até ficar bem cozido. “Passa o tempo que a gente quiser. Eu gosto de deixar uns 30 minutos. E se botar pouca água fica mais gostoso”, recomenda dona Nair.
FOTOS: Preta Luna, reproduzidas de celular da revista.