Seguimos com a segunda parte da homenagem aos 145 anos de fundação da cidade de Macaíba, com os textos publicados na 18ª edição da Revista Preá, em 2006, elaborados por este editor que vos escreve – um recorte interessante da cidade que pulsa cultura nos redores do centro comercial e foi berço de ilustres da intelectualidade potiguar.
História de Macaíba passa pelo Ferreiro Torto
O Solar de Ferreiro Torto é o prédio histórico que mais representa o município de Macaíba. Pelas histórias que contam imagina-se até que esteja situado nos confins da cidade. O primeiro grande massacre holandês no Estado, por exemplo, foi lá. E foi travado em um terreno pantanoso. Mas o Ferreiro Torto está no centro de Macaíba, quase que às margens das águas escuras do rio Jundiaí. Foi erguido em 1614, quando o Capitão Francisco Rodrigues Coelho recebeu algumas terras que dariam origem ao segundo engenho da então Capitania do Rio Grande, chamado Engenho Potengi.
O sítio hoje tem seis hectares. Do velho engenho sobrou mesmo a Casa Grande, ainda assim reconstruída. Há a intenção de realizar estudos arqueológicos para tentar resgatar a antiga senzala e capela do antigo engenho, ou mesmo alguns utensílios, como a moenda, soterrados naqueles chãos. Por enquanto, algumas réplicas das instrumentações e ferramentas antigas estão no interior do prédio. São tachos, fornos artesanais usados nas casas de farinha, moendas, carros de boi usados no transporte da cana-de-açucar, etc. As fotos são muitas, espalhadas nos dois andares da casa, construída em estilo colonial português.
A invasão holandesa se deu 20 anos depois de construído o engenho, em 1634. O Engenho ficou sob domínio dos holandeses até 1730, quando o movimento Terço dos Paulistas expulsou os flamengos da região. Mais de 100 anos depois, em 1847, o coronel Estevão José Barbosa de Moura comprou o engenho e construiu o casarão que hoje abriga o museu Solar Ferreiro Torto, no mesmo lugar do antigo. O casarão passou a receber autoridades, presidentes da província e até a família imperial do Brasil. Por lá eram realizados bailes e saraus que marcaram a Macaíba aristocrata do passado.
Com a morte do coronel o casarão foi vendido e posteriormente abandonado. A Fundação José Augusto desapropriou a moradora, a viúva Machado, em 1970, para oito anos mais tarde iniciar a restauração do prédio em ruínas. Concluída a recuperação, passou-se a funcionar o Museu de Arte-Sacra, mas foi fechado por falta de visitas e divulgação. Chegou-se a se instalar uma churrascaria. Foi quando o Conselho Estadual de Cultura se interpôs e o domínio voltou a ser da FJA. Com vistas à conservação do prédio, a sede da prefeitura municipal foi instalada lá, entre os anos de 1982 e 1989. Na gestão da prefeita Mônica Nóbrega Dantas é aberto no local o primeiro museu, em 1990.
O fim do mandato da prefeita culminou também com o fechamento do museu. Foi reaberto somente em 25 de abril de 2003, sob convênio entre prefeitura e governo do Estado. A área do entorno e o prédio foram reurbanizados. O museu hoje tem caráter didático. Quase que diariamente é visitado por alunos do ensino público. A doação de fotografias mostra o passado áureo da cidade. O museu hoje é símbolo maior da preservação da memória do município. O Complexo Cultural e Turístico do Ferreiro Torto dispõe ainda de sala dos artistas, patamar para apresentações culturais, duas trilhas ecológicas e salas de aula ao ar livre.
A arte de Zé do Couro
José Antônio da Silva, 65 anos, o Zé Celeiro é um daqueles sertanejos que conseguiu escapar da roça a muito custo. Sua sina podia ser igual à de muitos: filho de agricultor desde cedo começou a manusear a inchada, a plantar e a colher, nas zonas rurais do município de São Rafael, onde nasceu. Foi lá onde conheceu Manoel Severiano, velho mestre na manufatura do couro. O ofício foi passado. Há mais de 50 anos Zé Celeiro produz manualmente artefatos de couro os mais variados.
Já aos 26 anos Zé largou sua morada de infância. Pegou a estrada numa boleia e chegou a Macaíba, para trabalhar ainda na agricultura. Mas logo montou um comércio para vender artefatos em couro. Se mantém até hoje, segundo ele, sem muitas modificações. As celas e os arreios ainda são as peças mais procuradas, desde os primeiros trabalhos em São Rafael. O que modificou foi o material usado. As que prefere trabalhar são as celas antigas, do tipo suzana, feita de coro de bode e sova de boi. Mas Zé Celeiro bate nas celas mais resistentes como que orgulhoso da cria. E afirma sorridente:
“Hoje o material é melhor. É o camução. Chama-se cela cachoeirinha. O material vem lá do Sul. Dá mais trabalho de fazer, mas é mais resistente”. No comércio de Zé por onde se olha se vê couro. São gibões, calçados, sandálias de cabresto, bonés. “Vejo essas sandálias nas revistas. É 250 reais ou mais. Num tem vantagem nenhuma. Quero ver essas daqui se torar”.
Interarte quer preservar identidade cultural da comunidade
Às vezes pequenas iniciativas podem render resultados significativos. Quando o professor de geografia Telmo de Oliveira teve a ideia de montar um grupo de teatro no Centro Educacional Rural Alfredo Mesquita Filho (Ceru), não imaginaria que a garotada se dedicasse com afinco durante oito anos. Além de levar o nome da cidade em apresentações pelo interior, o grupo Interarte também resgata a cultura popular e histórias antigas do município, com peças teatrais que procuram retratar os costumes e o folclore de Macaíba.
O professor Telmo de Oliveira já trabalhou como ator em antigos grupos de teatro de Macaíba. Dessa vez é o diretor dos roteiros dos jovens atores, com média entre 18 e 20 anos. Todos os 15 alunos são da comunidade Lagoa do Sítio, Zona Rural de Macaíba. Os ensaios são nos fins de semana. É que muitos dos alunos estudam ou trabalham. Entre as peças já montadas estão Morte e Vida Severina, e a farsa Dois Corações e Quatro Segredos. No momento, a peça História de Nós Mesmos está afiada para se apresentarem no próximo Festuern, em Mossoró.
O ator Charles Simplício, 19 anos, conta que tomou até gosto pelas pesquisas que o professor incentiva seus alunos a fazerem para a montagem das peças. Em Histórias de Nós Mesmos, as cantigas e costumes antigos de Macaíba são resgatados através de muita pesquisa. Estão inclusos entre um diálogo e outro apresentações do boi calemba, coco de roda e cantigas infantis que fazem parte do imaginário popular dos macaibenses.
Os últimos dizeres da peça advertem e aconselham: “Esse tempo não pode morrer. Nas lembranças de minha mãe e do meu avô, está vivo! E está tão perto de nós. Eu posso jogar no computador porque é do momento. Mas também posso brincar de roda, de tô-no-poço, de esconder, porque agora é novo resgatar nossa identidade, nossos traços culturais. Isso sim, vai ser legal, porque são histórias de nós mesmos”.
Comunidade negra mantém a dança do Pau Furado
A comunidade de Capoeira dos Negros, a 27 km do centro de Macaíba, abriga uma das maiores representações culturais do município: a dança do pau furado, um folguedo antecessor ao côco de roda. De origem africana foi levado à comunidade por uma mulher conhecida como Maria Cabocla. Segundo descrição de José Vicente Bernardo, o Deba, 56 anos, era “uma negra mesmo, do cabelo que parecia pimenta do reino, porque ela não penteava”. De onde ela veio, Deba se abstrai. Diz que “veio do sertão de mei-de-mundo”.
Deba nasceu e vive em Capoeira dos Negros. O caminho para se chegar lá é difícil. A estrada é carroçável. Deba é quem “toma conta” do pau furado, juntamente com Neílson Francisco dos Santos, o Tete, 44 anos. O mestre da dança se chama Severino Pedro, conhecido como Bina. É ele quem compõe e sabe das cantorias do folguedo. A dança é praticada a cada duas semanas, geralmente aos sábados. Não há data fixa. Quando está marcada visitas de estudantes e pesquisadores eles se reúnem, desde que avisados antes. Um bom estímulo é uma garrafa de cachaça. O alcoolismo na comunidade é um problema a ser enfrentado por eles e pela prefeitura.
A dança do pau furado ora assemelha-se a uma roda de capoeira, ora de côco-de-roda. As vestes são em cores azuis e brancas. Dança-se aos pares. Entram dois de cada vez na roda, embalados pelo som de instrumentos como o ganzá, o zambê e, claro, o pau furado: um instrumento extraído de um tronco de árvore. Após cavada a parte interna, restando as “paredes” do tronco, coloca-se, numa das extremidades, o coro curtido, esticado. A outra extremidade é oca, para sair o som. Por isso chama-se pau furado. Muitas vezes o coro é esquentado junto a uma fogueira para regular o som, que pode ser mais grave ou mais agudo. O folclorista Deífilo Gurgel lembra que em Tibau do Sul também se usa o pau furado nas danças de zambê.
Capoeira dos Negros conta hoje com cerca de mil pessoas. Se há 20 anos só se via negros na comunidade – reconhecida recentemente como remanescentes de quilombo pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – hoje a miscigenação é frequente e percebe-se a variação nas tonalidades de peles e fisionomias entre eles. A provável origem da formação da comunidade é a de que negros fugitivos, sobretudo das indústrias de açúcar, se enveredaram pelo interior para formarem comunidades fechadas, como ocorreu em Sibaúma, Zumbi, Negros do Riacho, etc.
O caderno História do RN, encartado no jornal Tribuna do Norte, traz o depoimento de Severino Paulino da Silva. Ele conta que a origem da comunidade surgiu quando negros vieram de Assu, talvez por causa de uma grande seca. Faziam parte de uma família formada pelo casal Joaquim e Caiada, e seus filhos, todos negros. O casal vendeu doze cavalos para comprar a propriedade. O Sr. Carrias, antigo dono da Capoeira, enganou seu Joaquim entregando uma procuração em lugar do documento de venda. Quando da morte de Joaquim, Carrias exigiu mais cem mil réis aos filhos do falecido para passar o documento legal da venda do sítio. Os filhos pagaram a quantia e asseguraram a posse definitiva da terra. Os bisavós de Severino Paulino da Silva foram, segundo conta, o núcleo original da população de Capoeira dos Negros.
A área inicial da comunidade era de 36 quilômetros. Diminuiu muito porque alguns de seus moradores venderam suas partes. Durante a semana passam o dia na roça. Produzem mandioca, feijão e milho. Vendem seus produtos nas feiras de Macaíba, no sábado, e na de Bom Jesus, no domingo. A religião predominante é a católica. Há também um sincretismo com crendices populares, oriundas de cultos africanos e nativos. Mas a tradição antiga na comunidade é mesmo o pau furado.
FOTOS: Preta Luna, reproduzidas de celular da revista.
FOTO DO FERREIRO TORTO: Ricardo Araújo
Veja também: Macaíba, recorte cultural (parte 1)