Lições de um homem simples

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Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar

Chico Buarque

 Hoje foi um dia atípico. Levantei antes das seis para acompanhar minha irmã em um exame. O plano era chegar em casa cedo para trabalhar. No entanto, depois de tomarmos café numa padaria, o celular descarregou e foi preciso esperar algum tempo até que tivesse carga suficiente para pedirmos um uber. Por sorte, eu havia levado o notebook para a clínica e adiantado uma parte do trabalho. Enquanto esperava o celular carregar, fiquei do lado de fora conversando com um flanelinha muito simpático. O papo começou com a questão da violência no bairro e os frequentes assaltos ali próximo. Enquanto conversávamos, uma batida policial abordava dois rapazes que estavam em uma moto. Foi assustador ver aquelas armas enormes apontadas para os jovens que em seguida foram liberados. Nesse momento, ele me disse que “duas pessoas numa moto é sempre suspeito”, pois o assalto geralmente é realizado por mais de uma pessoa.

Outro dia, o filho mais velho dele foi assaltado quando voltava do trabalho. Aproveitou o ensejo para me contar de uma tentativa de assalto que ele mesmo sofrera num ônibus quando também retornava do serviço. Tinha pouca gente no transporte quando o assalto foi anunciado e, segundo ele, sua “cara feia” despistou os rapazes que, armados, levaram todos os pertences do restante dos passageiros, mas não “encostaram” nele. Ele ficou comovido com a reação de algumas moças após o ocorrido, uma delas tinha recebido o salário naquele dia.

E por falar em violência, relatou com pesar o envolvimento de alguns jovens de sua comunidade com o tráfico de drogas, lembrou inclusive de amigos de sua geração que foram vítimas do impiedoso “tribunal do crime”. João tem quarenta anos e atua há quinze como flanelinha, mas já trabalhou como vendedor de coco na praia, entre outras atividades. Diz que não saberia fazer outra coisa porque não estudou e agradece por conseguir sustentar a família com o que ganha ali, o que inclui a ajuda de alguns clientes que o conhecem há bastante tempo e doam alimentos, roupas. A esposa é dona de casa e ele, ao contrário de muitos homens, reconhece suas múltiplas tarefas e faz questão de elogiá-la: “ela trabalha mais do que eu”.

João começou a trabalhar aos doze anos, mas não se ressente por isso e fala com orgulho de sua honestidade e da luta diária para criar os seis filhos. O mais velho tem vinte anos e saiu de casa há pouco tempo para morar sozinho, assim que conseguiu o primeiro emprego. Os outros continuam morando com ele e a esposa. O mais novo tem dois anos. A filha de dezesseis anos já está em busca de um trabalho.

Quando falava dos filhos, ressaltou a importância da figura paterna na criação deles. Atribui a isso o fato de os filhos mais velhos não terem se envolvido “com nada de errado”, para usar suas próprias palavras, referindo-se ao envolvimento com drogas, criminalidade. Falou com orgulho da criação que ele e a esposa dão aos filhos, apesar dos poucos recursos e da instrução precária, sempre enfatizando que não vale a pena se envolver com certas atividades ilegais que a princípio podem parecer sedutoras.

Enquanto ele ressaltava a alegria de não ter nenhum filho envolvido nesse universo cruel que tem ceifado a vida de tantos jovens, falei da importância da educação e da presença do Estado para combater esse tipo de situação e oferecer às crianças e jovens oportunidades de se desenvolver plenamente e viver com dignidade. Escolas de tempo integral, cursos profissionalizantes, música, teatro, dança, esporte e lazer seriam os meios ideais para mudar essa realidade que tem deixado tantas famílias à mercê da criminalidade e do extermínio, sobretudo, de jovens pretos e periféricos.

João morou em diversas comunidades marcadas pela violência e lembra com pesar uma semana que marcou sua história de vida. Em sete dias, ele deparou com diversos crimes perto de sua casa, inclusive uma chacina. Quando voltava do trabalho, ele via os corpos ainda estendidos no chão. Além de sentir aquela perda, a maioria eram jovens, ele disse que o pior de tudo é presenciar a dor das mães que perdem seus filhos daquela forma. Esse seu relato me fez lembrar uma canção-crônica de Chico Buarque, “O meu guri”, que narra a história de um jovem que desce o morro todos os dias para fazer “seu trabalho” enquanto a mãe o aguarda em casa sem saber exatamente a atividade do rebento. Lembrei, especialmente, do momento em que a tv noticia a morte do rapaz: “Chega estampado, manchete, retrato / Com venda nos olhos, legenda e as iniciais / Eu não entendo essa gente, seu moço / Fazendo alvoroço demais”.

Ainda conversando sobre algumas dificuldades enfrentadas pela população, mencionamos o racismo que pessoas pretas sofrem todos os dias no Brasil, independentemente da classe social. Relatei algumas situações em que fui vítima de preconceito racial, assim como amigos próximos, e ele lembrou das queixas constantes da esposa, que já enfrentou algumas situações bastante desagradáveis por causa da cor de sua pele. Foi de cortar o coração o seu relato e o sentimento de impotência estampado em seu rosto quando me disse a tristeza que ela sente todas as vezes que é vítima de racismo.

Até quando isso será rotina no Brasil? Até quando um homem preto será “confundido” com ladrão e morto na porta de sua própria casa? Até quando um homem preto será perseguido dentro de um shopping e “confundido” com um ladrão? Até quando uma mulher preta será “confundida” com a babá/empregada doméstica, enquanto passeia com seu próprio filho? Até quando um homem preto será espancado até a morte por seguranças de shoppings/supermercados? Até quando um homem preto será “confundido” com ladrão quando tenta entrar em seu próprio carro e é espancado por dois “cidadãos de bem”?

Enquanto conversava com João, ele comia cuscuz. Perguntei se não tinha nenhuma mistura para acrescentar e ele disse que não, que o cuscuz estava apenas com manteiga, mas estava bom. Pensei em lhe oferecer algo mais, porém estava sem dinheiro naquele momento. Espero poder voltar outro dia e ajudá-lo de alguma forma.

Voltei para casa pensando naquela conversa e no quanto ela foi importante para mim. Agradecida pelas lições que aprendi com João, decidi escrever esta crônica e partilhar algumas das vivências daquela manhã inusitada. E quantas coisas João me ensinou sobre dignidade, empatia, gratidão, honestidade, alegria de viver…

Para finalizar, gostaria de deixar claro que não estou romantizando a pobreza. Sei das dificuldades por que passa uma pessoa como João e das inúmeras consequências da desigualdade social. Minha própria mãe era empregada doméstica e muitas vezes nosso alimento era fruto de doação, assim como as roupas que me vestiram na maior parte de minha infância. Minha mãe teve que entregar uma filha para adoção porque não tinha como lhe dar de comer. A menina já estava alguns dias à base de chá. Nunca me faltou comida, mas sei bem o que é uma vida de privações e jamais vou me conformar com a desigualdade que assola nosso país, sobretudo em tempos de pandemia. Como disse Saramago, o meu coração, “fizeram-no de carne, e sangra todo dia”.

Voltando à história de João. Quero destacar apenas sua coragem de enfrentar a vida e seu olhar amoroso em relação à família e às pessoas que o ajudam, seja com dinheiro, comida, roupas, não obstante todas as dificuldades que precisa enfrentar diariamente para sobreviver. Talvez os versos de Gonzaguinha possam traduzir melhor esse meu sentimento:

Aquele que sabe que é negro
o coro da gente
E segura a batida da vida o ano inteiro
Aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro
E apesar dos pesares ainda se orgulha de ser brasileiro


foto meramente ilustrativa (Lucas Incas by Flickr)

Andreia Braz

Andreia Braz

Escritora e revisora de textos.

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