No Centro de Velório um filho do falecido, gentilmente, me abre a porta da sala nº 4. Lá dentro, deitado no esquife, emergindo de flores em profusão, o corpo de Lenine Pinto, enfim, descansa depois de longa luta com a indesejada das gentes. Sua face, prestes a virar cinzas, estampa uma grande serenidade. Olho ao redor e, para minha mesma surpresa, vejo uma única pessoa, a secretária geral da Academia Norte-rio-grandense de Letras, acadêmica Leide Câmara. A um canto uma coroa de flores, homenagem da ANRL, instituição a que Lenine pertencia. Procuro o livro de presença e nele vejo as assinaturas de algumas pessoas, que ali estiveram antes de mim, inclusive intelectuais, confrades do extinto, aliás, bem poucos.
TALENTO NO SANGUE
Filho de Adamastor Pinto e Maria de Barros Pinto, Lenine de Barros Pinto nasceu em Recife no dia 12 de maio de 1930, e criou-se em Natal, sua terra adotiva, mas passou boa parte de sua vida em Brasília, onde exerceu o cargo de assessor parlamentar, no Senado Federal. Aposentando-se, voltou a morar em Natal.
O dom da escrita e o amor pelos livros pareciam estar no próprio sangue; pertencia a uma família de homens de letras, da qual também faziam parte os escritores José Pinto Junior e Lauro Pinto, e o jornalista José Mariano Pinto.
Dividindo-se entre a pesquisa histórica e a memorialística, Lenine deixou obra significativa, composta de vários livros e opúsculos, dentre estes “Natal, USA – II Guerra Mundial: A Participação do Brasil no Teatro de Operações do Atlântico Sul” (Natal: RN Econômico, 1995, edição fac-similar: Natal: Sebo Vermelho Edições, 2015), alentado estudo, focalizando, especialmente, Natal em face da Base Aérea norte-americana, Parnamirim Field, e “Reinvenção do Descobrimento” (Natal: RN Econômico, 1998), obra em que defende a sua ousada tese de que o descobrimento do Brasil não se deu em Porto Seguro, na Bahia, mas, sim, na costa do Rio Grande do Norte.
Ambos os livros muito bem escritos, pois Lenine era um verdadeiro escritor, dono de estilo aliciante. Nos próprios títulos dos seus livros deixa-se entrever o artista da palavra; veja-se, por exemplo, “O Mando do Mar”, seu trabalho mais recente, escrito quando ele, já bem idoso, padecia de algumas enfermidades – obra esta que, afora a beleza do título, não está à altura das anteriores de sua autoria.
NATAL, USA
Sobre “Natal, USA”, talvez o seu melhor livro, Veríssimo de Melo, escritor e jornalista, membro da ANRL, escreveu resenha, publicada no periódico “Notícias Culturais”, de Fortaleza (CE), ano V, nº 52, na qual, depois de focalizar diversos aspectos da obra, afirma, com justeza:
“…num livro definitivo de extraordinária riqueza de informações e novas interpretações do conflito. O volume ainda se alarga em notas e comentários sobre a guerra em Natal, com depoimentos pitorescos sobre o impacto da presença norte-americana na nossa cidade”.
Comparando “Natal, USA” com dois outros livros sobre idêntico tema – “Trampolim da Vitoria”, de Clyde Smith Jr., e “Contribuição Norte-americana à Vida Natalense”, de Protásio Melo -, Veríssimo diz:
-“O livro de Lenine Pinto é pesquisa mais abrangente. Ele trouxe novos fatos e interpretações com base em documentação até então desconhecida.”
E acrescenta:
“Tudo escrito no seu estilo primoroso, sem desprezar a graça e humor de episódios ligados a pessoas que aqui participaram dos trabalhos na defesa da cidade”.
Assino embaixo das palavras do mestre Veríssimo de Melo.
OBRA LITERÁRIA
Outra obra de Lenine Pinto que aborda o tema da II, Guerra, porém sob ângulo diverso: “O Reino das Bestas Feras” (Natal: Gráfica Print, 2007). Trata-se de uma introdução à história da Alemanha Nazista. A 2ª Guerra Mundial Através da Biografia, como diz o subtítulo.
Com maior repercussão, inclusive em âmbito nacional, “Reinvenção do Descobrimento” tem suscitado muitas polêmicas. Além de ser um desafio à historiografia “oficial”, também se distingue pela sua relevante qualidade literária. “Se non e vero e bene trovato”…
Um livro do início da carreira do autor – “Os Americanos em Natal (Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1976, edição fac-similar: Natal: Sebo Vermelho Edições, 2000), considerado obra menor, desperta, no entanto bastante interesse. Os assuntos nele abordados seriam objeto de estudo mais aprofundado em “Natal, USA”.
Ainda do começo da carreira do autor, “Natal, RN” (Brasília: Senado Federal, 1976; edição fac-similar: Natal: Sebo Vermelho Edições, 2018), uma incursão pela memorialística, trazendo painel da Natal de outrora, quando a cidadezinha provinciana vivia a sua belle époque temporã.
Com muita sensibilidade, o autor evoca figuras e fatos que ficaram como que incrustados em sua memória: o circulo de amizades, as famílias tradicionais, as festas, os tipos populares e pitorescos, o apogeu do bairro da Ribeira, o reflexo da II Guerra Mundial na vida citadina, os carnavais, etc.
Alem das obras acima citadas, as quais bastariam por si só para consagrá-lo como um dos nossos maiores historiadores, Lenine Pinto escreveu, complementando-as, os livros “Ainda a Questão do Descobrimento – Evidências náuticas e fontes documentais que apontam a área do Cabo de S. Roque-RN, como provável ancoradouro de Pedro Álvares Cabral” (Natal: RN Econômico, 2000) e “A Integração do Rio Grande do Norte e do Amazonas à Província do Brasil”, este em parceria com Gerardo Pereira (Natal: RN Econômico, 1998). Organizou e apresentou “A Coleção José Gonçalves” (Natal: Sebo Vermelho Edições, 2002), com alguns textos do escritor potiguar José Gonçalves de Medeiros e fortuna critica a respeito do mesmo.
Publicou ainda vários opúsculos sobre as temáticas de sua predileção – o descobrimento do Brasil e a II guerra mundial -, e, em parceria com Antonio Pinto de Medeiros, “Apontamentos da Rua 15 de Novembro” (Natal, 1948), raridade bibliográfica à qual não tive acesso.
Como se não bastassem tantas atividades, o operoso autor ainda achou tempo para dedicar-se à pesquisa de vários outros assuntos, como, por exemplo, a difusão do jogo do xadrez em Natal e a história do Cemitério dos Ingleses, nas imediações da Redinha.
Lenine Pinto faleceu em Natal no dia 23 de junho de 2019.
Fosse ele jogador de futebol afamado ou astro da música brega, teria recebido grandes homenagens, em sua despedida desta aldeia de Poti. Mas, era um escritor. A posteridade lhe fará justiça.
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