Na decadência do mundo capitalista, miséria e crise do homem do fin-de-siècle, somado a influência de Heine-Baudelaire-Rimbaud-Corbière, surge o paradoxo da poesia moderna, ou seja, Jules Laforgue (Montevidéu, Uruguai, 1860 – Paris, França, 1887) exibindo as feridas da separação entre a não-identidade e a tradição. Por entre estas feridas se abrem a sua poesia que quanto mais imita a fala comum da linguagem coloquial e quanto mais se afasta da retórica antiquada e imponente, mais ela se torna incompreensível no sentido vulgar.
Vinte e um poemas e quatro ensaios sobre: Baudelaire, Cargière, Rimbaud e Mallarmé. Assim está organizada e traduzida por Régis Bonvecino a coletânea Litanias da Lua, do poeta franco-uruguaio Jules Laforgue. A coletânea é uma oportunidade ímpar para um acesso imediato, quase uma intromissão, à sua trajetória dos alexandrinos aos versos livres dos “Derniers Vers”.
Em Litanias da Lua, a poesia de Laforgue é a constante transposição de imagens que não são telas mofadas no conformismo estético, mas são imagens sobrepostas através do fenômeno que se realiza em perspectivas únicas a cada mirada. É uma poesia que se nos dá sem apriorismos, levando em conta o seu teor de ironia (simulatio, illusio, permutatio ex contrario ducto) que nos propricia o distanciamento ou estranhamento que – entendendo conforme os poetas e teóricos do futurismo russo – faz com que as palavras sejam compreendidas num sentido inversamente proporcional, ou seja, num sentido contrário ao sentido próprio e, consequentemente, o pensamento também é ironizado na relação dos contrários. Ilustrando esta marca de Laforgue, de acordo com Ezra Pound, em A arte da poesia, o “ironista é aquele que sugere ao leitor que pense”.
Assim, Laforgue ironiza (critica) a mediocridade da mentalidade burguesa que – na miséria do pensamento – faz com que os seus vermes partam do mundo “sem visitar sequer o seu próprio planeta” (Mediocrité). Trafega uma agonia de simples agonias, onde o homem pária prepara uma festança como um bárbaro sem esperanças porque ele já tem medo de romper com tudo. Prefere os pequenos atritos ao verdadeiro conflito que soluciona a partir dos elementos contrários diante de si mesmo e do outro. O verdadeiro conflito é como a peste: ou sai purificado ou morre! Nesse momento, surgem os homens da arte para gritar que é muito tarde e não há mais razão para se evitar a quebradeira. “Às armas! Cidadãos! Não há mais RAZÃO!” (Simple Agonie).
Esse poeta estrangeiro vive a experiência do deslocamento (displacement) e do exílio dentro de suas próprias fronteiras. É o poeta estrangeiro em qualquer lugar – o franco-uruguaio lido por ibero-americanos. Esse poeta sem raízes – “judeu errante” – assume uma espécie de hermetismo onde abdica da ideia de se fazer compreendido e, ao mesmo tempo, uma dose de revolta e autonegação.
Sim embargo, em virtude de sua fome de realidade, diante dessas duas características marcantes em sua poesia, surge – não como um equilíbrio ou um sincretismo – uma postura crítica. Daí, são as mesmas vozes que se direcionam em sentidos diferentes e, ao mesmo tempo, são vozes diferentes se orientando no mesmo sentido, ou seja, é um jogo permanente de equivocidade e diversidade onde eu sou eu e sou o outro. É dizer que resiste o duplo onde o eu também se faz a partir da alteridade que se encontra no signo. Um e outro e ambos tout-le-temps. Diferente da dialética em que a síntese trata-se de uma suprassunção, entre a escrita e o sentido, o homem e o poeta, há um espaço. Mas é um espaço que se preenche através da forma que de-forma ou re-forma o significado, onde ambos os signos permanecem.
Ainda em Litanias da Lua, no ensaio sobre Charles Baudelaire (1821-1867), entre outras coisas, ele observa que o autor das “Fleurs du Mal” é o “primeiro que não sendo triunfalista se acusa, mostra suas feridas, sua preguiça, sua inutilidade entediada no meio de um século trabalhador e devotado” e, ainda, afirma que as angústias metafísicas “não existem para tocá-lo”, entendendo que a epiderme de sua alma é composta de “um outro tecido”, porque “ele pode ser cínico, louco, etc…”, mas que ele “nunca tem um tom de canalha, um tom falso nas expressões com os quais se veste”. Ele é “sempre cortês com o feio”.
Quanto a Tristan Corbière (1845-1875), autor de “Amours Jaunes”, Laforgue acredita que “ele teme o ridículo lírico, apocaliptico, fatal, tísico, histérico, lunar, prudhommesco, musical, sentimental, ingênuo, etc e coloca-se um pouco em todo lugar, rasura, diz: Lírico, eu? Nunca! – e de fato o próximo verso é malcriado”.
Comparando-o a uma “flor prematura e absoluta sem antes nem depois”, Laforgue reconhece o valor de Arthur Rimbaud (1854-1891), autor de “Une Saison en Enfer”, não nas estrofes, tampouco nas composições e nem nas rimas, mas na “riqueza extraordinária de seu poder de confissão, e no imprevisto inesgotável de imagens sempre adequadas”.
No último ensaio, sobre Stéphane Mallarmé (1842-1898), autor de “L’Après-midi d’un Faune” Laforgue diz que “a casa de Monsieur Mallarmé… contemporâneo dos Parnasianos e sua composição racionalizada e do sucesso inicial da poesia feita de uma psicologia descritiva e didática (Sully Prudhomme, Bourget), não é uma gagueira de criança machucada, mas o Sábio que divaga”, porém não se trata de uma divagação imagética “como a do sonho e a do êxtase inconsciente, ou seja, sentimentos expressados com o imediatismo da criança que tem à sua disposição apenas o repertório de suas necessidades, mas sim uma divagação racional!.
Em vida, Jules Laforgue publicou 4 livros, a saber: “Les Complaintes” (1885), “L’Imitation de Notre-Dame la Lune” (1886) – financiados por ele mesmo -, além de “Concile Féerique” (1886) e “Moralités Légendaires” (1887). Em 1890, três anos após sua morte, foram publicados os “Derniers Vers”. O suficiente para tornar-se mestre de T.S. Eliot (1888-1965); Ezra Pound (1885-1972 e Marcel Duchamp (1887-1968), além da grande influência deixada aos poetas brasileiros Pedro Kilkerry (1885-1917), Marcelo Gama (1878-1915), Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e tantos outros.
Enfim, no balanço das palavras, a poesia de Jules Laforgue é aquela que faz bailar o pobre corpo humano que lamenta as paisagens da natureza com uma vontade que não tem desejos e, tampouco, piedade, porque a vontade é em potência, porém o desejo e a piedade são angústias metafísicas que impedem o des-velamento.