Figuras populares de Martins

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

No meu tempo de menino, em Martins, ouvia falar em duas antigas personagens das ruas: Valeriana e Mariana Tampo. Tinham se encantado há longos anos, mas os seus nomes ainda ressoavam na crônica sentimental da cidade. Ex-escravas, levaram a vida a mendigar, do Jacu à Lagoa Nova; do Canto à Umarizeira. Popularíssimas.

De Mariana Tampo – suja, molambenta, como o próprio nome indica – restaram apenas poucas lembranças.

Valeriana – dizia-se – morreu com 116 anos. Era “um tipo inesquecível”: espirituosa, irreverente, desbocada. Depois de tomar umas e outras, armava o circo.

Câmara Cascudo que, menino de calças curtas, morou em Martins, evoca-a entre outras figuras:

“O vigário, padre Soares, promovia festas religiosas, com fogo-de-vista e barraquinhas; duas, uma do encarnado e outra do azul. O povo era maluco por esses Partidos. Mais de trinta anos depois, o meu amigo Nizário Gurgel meteu-se em brigas pruviniente desses causos, como diria a negra Valeriana, alta, magra, conversadeira de estórias bonitas.” (1)

É possível que o menino, futuro mestre do folclore, tenha tomado aulas de cultura popular com a velha mendiga.

Outro escritor, Raimundo Nonato da Silva, martinense da Rua das Pedras, também dá o seu depoimento. Após referir-se à antiga condição de escrava, afirma:

“Agora era diferente. Valeriana era livre do corpo, mas era escrava da alma. E quase nua, de pés descalços e de língua solta, dava conta da vida de todo mundo.”

Diz Nonato que ela foi pioneira do top less, pois só usava um sujo cabeção de algodãozinho, “que lhe caía dos ombros e que dava a idéia de nunca ter sido lavado.” (2)

Grandes figuras populares, como Valeriana, vão desaparecendo da tradição oral, mas, felizmente, foram preservadas pelo registro em letra de forma. É o caso de Bernardino Vapor, andarilho que fez incríveis façanhas na Martins de meados do século XIX. Bota de sete léguas pelas estradas do sertão. A pé. Veloz que só ema.

Em sua simpleza, desempenhava importante papel na comunidade, pois fazia as vezes de correio.

A seu respeito, Câmara Cascudo conta interessante episódio.

Por volta de 1850, o Juiz de Direito de Maioridade (Martins), Dr. João Valentino Dantas Pinagé e o Juiz Municipal, Dr. Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti, inconformados com nomeações de autoridades policiais, rebelaram-se e pegaram em armas, declarando que não permitiriam a posse dos nomeados.

O Presidente da Província, aliás, Vice- Presidente no exercício da presidência, João Carlos Wanderley, mandou o tenente Joaquim Paula Moreira com uma boa escolta, empossar as autoridades e restabelecer a ordem. Nesse ínterim a política mudou, e um novo Presidente, José Joaquim da Cunha, assumiu o governo. Logo, os dois juízes enviaram-lhe documentação explicativa e pediram-lhe que a força nada fizesse. Esta já se achava em caminho. “Mandaram, de Martins a Natal, o famoso andarilho Bernardino Vapor, com a papelada. Bernardino Vapor fez 150 léguas em três dias enquanto a tropa marchara apenas quinze…

“Quando Paula Moreira chegou à Maioridade já encontrou ofícios do Presidente dispensando-o da missão e ordenando o regresso imediato dos soldados.” (3)

Toda cidade do interior tem seu bêbado oficial. Martins não poderia fugir à regra…

Nos idos de 1950, Júlio de Antônio Inocêncio, alto, magro, desgrenhado, era que nem o ébrio da canção de Vicente Celestino.

Júlio tinha sido músico, integrante da banda, cujo regente fora o seu pai, Antônio Inocêncio de Oliveira, escrivão do 2° Cartório Judiciário.

Quando “enchia a cara”, Júlio gostava de fazer discursos. Levantava os braços, num gesto teatral, decerto aprendido com os oradores dos comícios, e bradava:

– Meu Brasil!!!

E não passava disto.

Na festa da Padroeira, hora da salva, era de vê-lo, acompanhando a banda, a fazer mugangas, como que tocando um instrumento invisível.

As crianças fugiam dele como de um papangu, mas não tardavam a perceber que “não fazia mal a uma mosca”.

Grande Júlio. Personagem chapliniano extraviado em plena Serra do Martins.

Alguns tipos, igualmente memoráveis, constam do folheto “Descrição da Serra do Martins”, do cantador Pedro Cardoso.

Estanislau, famoso fogueteiro, pau d’água, tem o seu perfil traçado nos seguintes versos:

“Nesta terra tem mais um fogueteiro

Conhecido por nome Estanislau

É um velho e até não é tão mau

Porém bebe e é muito cachaceiro

Vende os fogos e gasta seu dinheiro

Perde logo alpargatas e o chapéu

Chega às vezes em casa como um réu

Mas na arte é exímio e singular

E os fogos que dele se soltar

Sobem tanto que vão bater no céu.”

No livro “Serra do Martins”, Raimundo Nonato da Silva evoca o fogueteiro da sua meninice, dedicando-lhe dois capítulos. A certa altura, diz:

“O cabrochão do Canto era um conversador admirável, vivo, alegre, cheio de ditos e potocas e de muito bom humor.”

Em sua toca, misto de residência e oficina, no sítio Canto, arredores de Martins, explosões e incêndios tornaram-se coisa corriqueira, segundo Nonato. Mas, Estanislau, com a proteção de Santo Onofre, nunca sofreu nada.

Seus foguetões, bombas e girândolas faziam o encanto da Festa da Padroeira, acontecimento maior da cidade. Estanislau era um artista e não sabia.

Ele mereceu do poeta Cosme Lemos, seu conterrâneo, uns versos evocativos e nostálgicos, cujas estrofes finais dizem assim:

“Rodas, salvas e morteiros

O maior dos fogueteiros

O céu aos meus olhos punha!

 

Ao seu nome ergo o meu hino,

Com meu amor de menino

Estanislau Aires Cunha!…” (4)

Outros tipos admiráveis enriqueceram a paisagem humana martinense, já em meados do século passado. Mãe Quinola, benzedeira afamada; Branca de Zé Furtado, parteira que viu nascer meio mundo; Olímpio, engraxate, humorista nato; João Silva, dono de um modesto café, dava-se ares aristocráticos, gostava de falar difícil. Todos, hoje, “dormindo profundamente”. Saudade…


NOTAS

  • Prefácio ao livro “Martins-Sua Terra, sua Gente”, de Manoel Onofre Jr.
  • “Serra do Martins”, Gráfica Olímpica Editora, Rio de Janeiro, 1978, pág. 181 a 186.
  • “Governo do Rio Grande do Norte” – Livraria Cosmopolita, Natal, 1939, págs. 132 e 133.

Apud Raimundo Brandão – “A Viagem da Saudade” – Fundação Guimarães Duque / Fundação Vingt-Un Rosado. Mossoró, 2000 – p. 241

Manoel Onofre Jr.

Manoel Onofre Jr.

Desembargador aposentado, pesquisador e escritor. Autor de “Chão dos Simples”, “Ficcionistas Potiguares”, “Contistas Potiguares” e outros livros. Ocupa a cadeira nº 5 da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidos do mês