Segunda-feira é dia de feira em Currais Novos. A cada feira a cidade se converge em um dos maiores centros comerciais do Seridó, vindo gente até da vizinha Paraíba para negociar os mais variados tipos de quinquilharias na cidade do tungstênio. Para um currais-novense habituado ao cotidiano, é o melhor dia da semana para abastecer a dispensa de casa com mantimentos e tomar cachaça com os amigos, jogando conversa fora.
Certo dia, passando por Currais Novos, praticamente metade do caminho que nos levava à Caicó para uma reportagem, o intrépido e saudoso jornalista Leonardo Sodré resolveu parar a viagem com intenções de beber uma cerveja para matar a sede, “estirar” as pernas, aproveitando para ver alguns aspectos da feira. Minha verve fotográfica teimava em capturar as nuanças impregnadas no rosto de um feirante sofrido ou cenas urbanas de uma típica cidade interiorana, enquanto Leonardo Sodré anotava tudo que via pela frente, momentos que servisse de subsídio para escrever suas crônicas de viagem.
Era quase meio-dia quando vi pela primeira vez o poeta numa “latada” da bodega de seu Tião, próximo ao Mercado Público Central, onde entrei por acaso, tentando me esconder do sol abrasador do sertão. No centro de uma grande mesa de madeira, um senhor alto, cabelos brancos e bem falante contava histórias e declamava poesias, parando a atenção de uma dúzia de pessoas a sua volta. Numa mesa de canto, fiquei escutando aquelas conversas por alguns instantes, enquanto esperava Léo Sodré que se perdeu, por alguns instantes, na multidão daquela feira.
Quando ele se levantava da mesa, caminhando até o balcão para abastecer seu copo com aguardente, trocávamos algumas palavras de apresentação. Não demorou muito para que aquele senhor com aspecto rude se dirigisse à mesa, onde eu estava degustando um bode à moda do sertão, se apresentando como Licurgo Carvalho. Começamos a conversar e pude perceber que era um poeta apaixonado pelo Seridó. Léo chegou a tempo para ouvir Licurgo Carvalho confessar que já andou muito “no meio do mundo”, que agora voltou a sua terra afim de viver o resto dos seus dias.
Aparentando já ter chegado a meia-idade, o poeta é um tipo sertanejo forte e alto, preparado na lida diária do roçado que cultiva diariamente em um pequeno sítio onde mora sozinho, localizado a 20 quilômetros de Currais Novos, ludicamente chamado de Quixabeira. Licurgo disse que gosta de viver no pé da serra, plantando o que a terra pode dá, criando cabras e vacas para sua subsistência e, nas horas de inspiração, gosta mesmo é de escrever poesias que falam sobre sua terra e o povo seridoense.
A conversa rolava solta no cair da tarde. O vento que soprava em cima da Serra do Doutor era seco, mas ajudava a esfriar o calor do dia. O poeta confessou suas predileções pela poesia de Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto e Augusto dos Anjos, mas não escondeu seu fascínio por poetas potiguares como Ferreira Itajubá, Jorge Fernandes, Othoniel Meneses e outros. Em currais Novos, citou os poetizas Iara Carvalho e Maria Maria Gomes, cujas poesias, Licurgo declama a todo instante..
O sol repousava lentamente por trás da serra de Sant`Ana e a noite caiu ligeiro no sertão do Seridó. O burburinho da feira já havia se dissipado e no entanto, o versejar do poeta nos encantava lentamente, mas precisávamos seguir viagem para Caicó – afinal, aquela seria uma parada rápida. Como última tentativa de prolongar o nosso encontro, Licurgo nos convidou para pousar aquela noite no sítio Quixabeira. Agradecemos o convite com promessas de passar um final de semana inteiro em sua companhia. Antes de nos separarmos, Licurgo rabiscou em guardanapos alguns poemas, os quais foram distribuídos conosco como lembranças de um encontro com a poesia seridoense. Porém, ele não permitiu que eu o fotografasse, guardava a supertição de que a fotografia “tirava a alma” da pessoa retratada.
Prometendo manter sempre um contato mais próximo, deixamos o poeta na companhia de seu Tião, esperando um moto taxista para levá-lo à Quixabeira. Voltamos para a BR 226 em direção ao nosso destino. No carro, um silêncio sepulcral se instalara entre a gente, como se cada um tentasse construir uma imagem própria do poeta currais-novense que acabamos de conhecer. Sob o clima daquele mister, resolvemos olhar para o poeta com os olhos alegres que ele merece, deixando que suas canções reflitam um céu de estrelas poéticas.
Soneto para Maria
(Licurgo Carvalho)
Musa galega! Um gesto de dor ou de afeição
Rogo para nunca a feiúra chegue a esse cândido semblante
Diante de Poti, conserva a rudeza pura do sertão
Do Potengi, suplicai a ausência do inferno pálido de Dante.
Em teu olhar não quero a tristeza; não quero
Em tua boca, o suave e idílico veneno da paixão
Contenta-te com o vultoso guerreiro de Homero
Extraindo prazeres de um parnasiano coração.
Deixai-me com memórias do teu corpo, imagem atrativa
O amor, cujo som, de uma harmonia pulsa incessante
Que cante aos ouvidos d’alma, uma poesia limpa e viva.
Versos que acalentem as lembranças no canto do Curió
No leito de Vênus, onde amamos intensamente,
Deixasse impressões nesse epitalâmico chão do Seridó.