É o ápice da “evolução cervejeira” beber lager?

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Complexidade, dogmatismo e determinismo no universo das cervejas artesanais

Saudações, cervejeiros que evoluem!

Pretendo no texto de hoje debater um tema que tem se apresentado no mundo cervejeiro com alguma persistência, o retorno das Lager’s e como isso acabou por ganhar uma aura de superioridade por seus defensores. Por incrível que pareça, algo que começou como uma brincadeira na internet, acabou de fato se tornando algo defensável.

A princípio, não imagino que seja espantoso alguém ter predileção por Lager’s. De maneira alguma há de se ter essa recriminação. Até porque, o amplo leque de estilos que essa família engloba, vai muito além da usual cerveja de massa para ser bebida estupidamente gelada e em doses cavalares.

Acredito que o maior equívoco nisso tudo, como argumentarei mais detidamente nas seções a seguir, é a defesa dogmática e quase determinística de quem acredita em haver uma “evolução” na escala cervejeira. Como se houvesse uma escalada entre estilos, dos mais básicos e de entrada até os mais complexos, evolutivamente.

No entanto, quem assim advoga (que as cervejas Lager, na verdade, são o ápice evolutivo) subverte a ordem piramidal da evolução, colocando-as como o topo da cadeia cervejeira. Ou seja, o problema posto nessa questão é como apontar, de forma resolutiva, o que é uma evolução de escala de gosto cervejeiro, para, só então, tentar inverter algo que é tido como prevalente.

Assim, no decorrer do texto, vamos abordar como essa premissa evolutiva é derradeiramente destoante, bem como qualquer determinismo em termos de pressuposição de como um estilo (ou família de estilo) cervejeiro é melhor do que outro é algo que não faz sentido prático algum.

A classificação dos estilos de entrada e a “evolução cervejeira”

A princípio, podemos dizer que cada grande família de estilos cervejeiros possui suas próprias características, sejam as Ale’s, as Lager’s, ou as de Fermentação Espontânea/Mista. Não entrarei em detalhes sobre as particularidades de cada uma, mas, uma visão introdutória pode ser lida nesse texto AQUI.

Inobstante, mais do que o mero conhecimento sobre as famílias de cervejas e seus estilos decorrentes, há certa visão no mundo das cervejas artesanais que precisa classificar os estilos evolutivamente, como se existisse um propósito inicial pré-definido, e seu ápice fosse chegar até o que há de mais complexo (evolutivamente falando).

Certamente, há uma classificação vulgar em estilos de entrada e demais estilos. Assim, quando se fala em estilos de entrada, é comum se citar Pilsen, Witbier e Weizenbier. Esses seriam os estilos mais fáceis a serem assimilados por quem só tem o costume de beber as cervejas de massa (que pertencem aos estilos: Standard American Lager e Premium American Lager).

Contudo, a sinalização (ou classificação) de que existem estilos de entrada não denota, necessariamente uma escala evolutiva.

Primeiramente, a precípua complexidade evolutiva não existe caso a pessoa não seja uma bebedora assídua de cerveja (e isso inclui qualquer estilo de cerveja, não apenas as de massa – ou seja, da família Lager), que pode ser o caso de quem só bebe vinho ou destilados, exemplificativamente.

Secundariamente, a complexidade não é algo intrínseco a uma família de estilos cervejeiros. Ela pode estar mais atrelada (ou menos identificada) com alguns estilos.

No entanto, os chamados estilos de entrada fazem o degustador se familiarizar com o universo das artesanais mais pela facilidade de acesso do que pela complexidade propriamente dita. Haja vista que, alguns estilos históricos ou estilos menos populares (como, por exemplo, a Kölsch ou a Cream Ale) podem não ser tão gritantemente difíceis de serem assimilados, mas não são encontrados com facilidade em qualquer supermercado. Outrossim, ser (um estilo) de entrada não simboliza falta de complexidade, e sim uma capacidade maior de apresentação de estilos cervejeiros e de sua consequente capilaridade de oferta.

O dogmatismo na evolução cervejeira

Outro grande problema em advogar em prol de uma (pretensa) evolução cervejeira por meio do argumento da complexidade reside no fato de que ela é uma classificação dogmática. Ou seja, ela pressupõe uma finalidade em perseguir o aumento no grau de complexidade entre os estilos, como se eles brigassem entre si para ver qual é o melhor.

O dogma aqui instituído é o da complexidade. Ele não pode ser questionado, afinal, beer geek que se preze está sempre bebendo o que há de mais hypado possível. Isto é, o hype é a complexidade, que por sua vez é o dogma veladamente instituído. Observando sociologicamente a cena artesanal cervejeira isso tudo faz sentido, bem porque é o hype que gira as correntes do marketing atualmente.

Segundo essa visão dogmática, beber os estilos dotados de maior complexidade significa abandonar os estilos de entrada e fingir que os estilos clássicos não existem, exceto se for alguma cerveja belga raríssima com algum diferencial produtivo (seja porque não limpam o teto da cervejaria desde que o Sacro Império Romano-Germânico acabou, ou porque o cervejeiro se desdobra em mil funções para fazer a cerveja sozinho).

Dessa maneira, a complexidade se faz autorreferência (similarmente, por isso mesmo que ela é dogmática), somente o hype é capaz de inflar a complexidade, da mesma forma que ele é por si mesmo a complexidade. Os estilos acabam perdendo as suas peculiaridades próprias (variações estilísticas dentro da própria família de cervejas) para poder se render ao que se estabelece como dogma de “ser uma cerveja complexa”.

Determinismo… às avessas?

Se, por um lado, o dogmatismo cervejeiro calcado no hype não faz sentido, por outro, o determinismo em defender as cervejas da família Lager como apogeu da evolução cervejeira, tentando subverter a ordem posta, também não faz sentido.

Apesar de tímido, esse movimento começou referenciando as Lager’s finas e depois se moveu mais diretamente para o conjunto genérico de Light Lagers. O seu determinismo (que também soa deveras dogmático, saliente-se) se ancora na premissa de que a verdadeira complexidade está na dificuldade em produzir uma Lager.

Superando os percalços produtivos das cervejas da família em apreço, algo que por ele mesmo já daria um texto em separado, o argumento posto também é incipiente, e direi a seguir o porquê. Para o degustador não-competitivo, ou seja, aquele que apenas almeja beber a cerveja como uma forma de lazer atrelada ao conhecimento da cultura cervejeira, inexiste qualquer forma de choque entre estilos.

Há a plena liberdade em beber um estilo de Lager ou um estilo de Ale, sem que um sobreponha o outro pela complexidade. De fato, algumas características atinentes aos estilos (e não às famílias propriamente) podem obnubilar o outro, por exemplo, alta carga de torra, vai mascarar elementos maltados mais sutis, como panificação. Da mesma maneira que qualquer forma de envelhecimento também vai se sobrepor a perfis lupulados mais florais. Nesse passo, tais choques de percepções sensoriais devem ser evitados na mesma etapa de degustação.

Todavia, isso não significa uma briga de famílias de estilos, entre Ale e Lager. Tampouco que esse é melhor que aquele ou vice-versa. Não há esse determinismo para quem não se agarra ao infundado dogma do hype. Nem mesmo a inversão do que se costumou determinar por complexo (Ale superando Lager) é possível de escapar da dicotomia maniqueísta do dogmatismo, afinal, apenas se inverte a polaridade da discussão, sem que nenhum argumento novo seja trazido ao debate cervejeiro.

Saideira

Acredito que não exista melhor conclusão para o texto de hoje do que celebrar a diversidade de famílias de estilos cervejeiros, cada um com sua complexidade e particularidades. Cada um tem seus próprios elementos de definição sensorial, a partir dos quais seus valores podem ser extraídos e um séquito de degustadores os fazem virar seus estilos prediletos.

Qualquer definição cervejeira que busque dogmatizar a complexidade como fonte ulterior de conhecimento, ou que faça com que escalas determinísticas de evolução cervejeira sejam estruturadas serve somente ao poder aglutinador do hype. Quem, verdadeiramente, busca conhecimento de estilos cervejeiros e efetuar uma boa análise sensorial das cervejas não há de se prender a tais pretensas formas de evolução, tampouco a dogmas ou a determinar o que é mais complexo, com base apenas nas famílias de estilos.

Derradeiramente, colocar Lager sobre Ale, em termos de complexidade, é só uma forma de escape, uma maneira de tentar firmar (mais) uma (nova) modinha cervejeira, só que às avessas.

Recomendação Musical

A recomendação musical de hoje vem na esteira do tema proposto no texto!

Vamos com a música Do The Evolution, da icônica banda de grunge de Seattle: Pearl Jam. Por mais que não seja a minha canção favorita, deles, o clipe é muito bem feito e tem tudo a ver com a “evolução” (também em termos cervejeiros).

Saúde!

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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2 Comments

  • GUSTAVO GUEDES DA FONSECA

    Muito bom texto. Esse “hype” de “Lager”, eu acho que nada mais é do que uma linda e grande jogada de marketing das próprias cervejarias.

    Apesar de algumas Lagers serem difíceis de serem feitas, no geral eu entendo que são cervejas bem mais baratas de serem feitas. Com isso, joga se hype em cervejas baratas, cobram 40 reais em latinha de pils mequetrefe e bingo!! lucro, lucro lucro!

    Outro aspecto é o ego do cervejeiro. Algumas Lagers são difíceis de “acertar’ e fazer. Cervejeiro artesanal que consegue acertar fazendo Lager é tido como o “p das galáxias” no meio.

    Mas pra mim, o mais surreal é que a rainha (há muito tempo) das cervejas Lager no Brasil, a Bamberg, que faz baitas cervejas Lagers não tem qualquer hype. O hype só vale para cerveja de cervejaria modinha…. ou seja, nevermind the hype…

    abraço

    • Lauro Ericksen
      Lauro Ericksen

      Saudações, nobre amigo!
      Concordo plenamente com suas palavras! Aliás,você foi cirúrgico no seu comentário!
      O hype o serve para gerar mais lucro, pois, cervejarias tão boas quanto (adorei o exemplo da Bamberg), não conseguem os mesmos resultados ou a mesma divulgação.
      Aí fica fácil vender Pilsen por 40 e até 50 reais a lata! Surreal mesmo! Por isso que tem que ficar sempre esperto com quem planeja capitalizar na modinha cervejeira!

      Abraço!!!

      🍺🍺🍺🍺

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