Por Fernando Luiz
Eu tenho plena consciência de que sozinho ninguém chega a lugar nenhum. E sabedor disto, não posso negar que tenho recebido, ao longo dos anos, ajuda de muitas pessoas que apoiam o meu trabalho defesa da valorização dos nossos artistas. Apesar de todas as dificuldades, existem três coisas me fazem prosseguir na minha luta. Primeiro, por ter sofrido durante muito tempo uma espécie de bullying cultural pelo fato de cantar um tipo de música rotulado como brega; segundo, sempre agi pensando no bem comum e no respeito aos artistas populares da minha terra; terceiro, nunca perdi a capacidade de lutar no sentido de transformar meus sonhos em realidade, principalmente quando se trata de defender os nossos talentos.
Esta convicção começou a nascer em mim quando eu li, ainda adolescente, o discurso de Martin Luther King, no qual ele falava do sonho que tinha em ver a igualdade racial se tornar realidade nos Estados Unidos. É um discurso com verdades tão profundas que seu conteúdo pode ser adaptado para qualquer situação, em qualquer época e em qualquer lugar. Ainda hoje as palavras do pacifista negro americano me inspiram ao ponto de, sem medo de errar, eu ter adaptado suas palavras à realidade dos nossos artistas talentosos e esquecidos. E foi o que eu fiz: preparei um texto que li na tribuna da Câmara Municipal de Natal, por ocasião de uma audiência pública realizada naquela casa parlamentar, há alguns anos, para discutir a valorização da arte e da cultura na nossa cidade.
Tomo a liberdade de postar nesta coluna o texto que li naquele dia, inspirado no discurso imortal de Mather Luther King, sempre fortalecido na esperança de que os sonhos dos artistas mais humildes, autênticos representantes da nossa arte e da nossa cultura, não morram no nascedouro. Eis o texto:
“Hoje eu afirmo e reafirmarei sempre: ainda tenho um sonho enraizado no sonho dos artistas humildes da minha terra.
Eu tenho um sonho de que um dia Natal e o Rio Grande do Norte despertarão para o respeito aos seus valores culturais e que, ao despertar para esta verdade, todos darão aos seus artistas um tratamento respeitoso.
Eu tenho um sonho de que um dia (e que não demore) nas ruas mal iluminadas e sujas de bairros afastados, brilhará uma luz para iluminar a estrada dos talentos esquecidos e permitir a estes seguirem no rumo certo em busca dos seus ideais.
Eu tenho um sonho de que um dia (e que não demore) o cheiro da pobreza e o odor oriundo da sujeira espalhada pelas ruas dos bairros afastados não sejam obstáculos ao exercício da cidadania e muito menos ao florescer do direito à liberdade de expressão manifestada através da arte dos seus moradores.
Eu tenho um sonho de que os filhos daqueles que nasceram talentosos – mas pobres -, um dia viverão numa terra que lhes dará um tratamento mais digno do que o tratamento dado aos seus pais.
Eu tenho um sonho de que um dia (e que não demore) a prepotência de alguns artistas privilegiados por terem uma situação social e financeira confortável caia por terra, e junto com esta prepotência caia também a discriminação que eles possam ter com relação a muitos dos seus próprios colegas, só pelo fato de eles serem artistas humildes.
Eu tenho um sonho de que a morte da prepotência dos presunçosos faça nascer no seu lugar um fio de esperança para os seus colegas que sofrem a dor da discriminação e a humilhação do esquecimento.
Eu tenho um sonho de que, junto com o nascimento deste fio de esperança, também surjam os acordes de uma sinfonia de fraternidade que será cantada por artistas dos mais diversos estilos musicais, estimulando o respeito mútuo e o dever de cada um reconhecer o direito do outro.
Mais do que um sonho, eu tenho uma esperança: a de que os nomes de Cornélio Campina, Djalma Maranhão, Deífilo Gurgel, Câmara Cascudo, Dona Militana, Chico Daniel, Manoel Marinheiro, Elino Julião e tantos outros não sejam esquecidos, nem se apaguem das memórias das novas gerações por falta de um trabalho permanente para preservar a herança cultural que eles nos deixaram.
Mais do que um sonho e do que uma esperança, eu tenho a fé de que um dia (e que não demore) tenha fim o descaso para com os talentos humildes das comunidades esquecidas.
Eu tenho o sonho mais bonito, a esperança mais inquebrantável e a fé mais inabalável de que, quando nós – artistas, povo e gestores -, permitirmos soar o sino da igualdade cultural em todas as ruas, em todos os bairros e em todas as moradias da capital; quando isto acontecer, um rastilho sonoro há de se espalhar, ganhar o interior, invadir comunidades, ruas e avenidas das cidades do nosso estado. Então, a estrela da igualdade social brilhará acima de interesses pessoais, econômicos, políticos e ideológicos, para fazer despertar em todos o amor pelo que é nosso, o sentimento de preservação das nossas tradições esquecidas, e a generosidade para com artistas humildes que querem apenas viver da sua arte e que, embora sendo grande maioria numérica, têm seus anseios sufocados e seus sonhos destruídos, por serem vítimas de um sistema que fortalece um verdadeiro “apartheid” cultural.
Eu tenho crença absoluta de que minha luta possa ser uma modesta contribuição no combate a qualquer preconceito cultural injusto, inclemente e tristemente semelhante a um modelo cruel que, durante décadas alimentou o racismo, prendeu pacifistas, matou ambientalistas, condenou ao exílio educadores, calou a voz de ativistas sociais, levou ao ostracismo defensores da justiça, da igualdade social e da preservação dos nossos bens culturais, sufocou o grito dos humildes e permitiu que uma minoria privilegiada se achasse dona do destino de uma maioria injustiçada.
Então, quando os interesses de poucos (que só querem o bem de si próprios) deixar de prevalecer sobre a necessidade de muitos (que também querem o bem dos seus semelhantes), quando isto acontecer – E SOMENTE QUANDO ISTO ACONTECER -, nós potiguares poderemos bater no peito, erguer a nossa voz e gritar: “Aqui, existe diversidade cultural; aqui os artistas são respeitados; aqui o valor de um artista não se mede por sua posição social ou financeira e sim pelo seu talento. Aqui é Natal. Aqui é o Rio Grande do Norte. E eu me orgulho de ser daqui”.
*Inspirado no discurso I Have a Dream, feito pelo pastor e ativista político norte-americano Martin Luther King, no dia 28 de agosto de 1963, nos degraus do Lincoln Memorial, em Washington, D.C., como parte da como parte da Marcha de Washington por Empregos e Liberdade e no qual ele combatia o racismo e falava da necessidade de união e coexistência harmoniosa entre negros e brancos no futuro.
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