BIBLIOBUNKER: Escaladas da contracultura – Natal, década de 1980

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ESCALADAS DA CONTRACULTURA: Natal, década de 1980
Autor: Artemilson Lima
Editora: Moinhos
Ano: 2018
Páginas: 209

Fruto de uma pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN, sob orientação do professor Alex Galeno, o livro de Artemilson Lima me fez sonhar em pegar o retorno na estrada do tempo, de volta para a Natal das últimas décadas do século passado.

Essa era a Natal da minha infância e do início da minha adolescência, que viu frutificar, por entre esquinas, bares e galerias, uma intensa cena contra cultural que misturava música, teatro, artes visuais e publicações poético-literárias em formato de revistas e zines. Tudo isso assombrando o coro dos contentes e pintando, com tons de revolução, a provinciana fazenda iluminada do Coronel Cascudo.

Ancorado em referenciais teóricos que vão de Edgar Morin a Peter Sloterdijk, passando por Antônio Bivar e Theodore Roszak, Artemilson Lima nos carrega pela estrada da história, a partir de suas memórias pessoais, que emergem dos caminhos trilhados pelo interior do Rio Grande do Norte até a cena noturna do “baixo” (zona que ia da Ponta do Morcego até o antigo Hotel Reis Magos). Seguindo uma metáfora de Sloterdijk, Lima nos convida a escalar com ele “o monte improvável da cultura”, num misto delicioso de narrativa literária, memória histórica e pesquisa acadêmica.

A leitura da cena contra cultural da cidade se descortina assim, na trajetória de ascensão desse livro, a partir do final dos anos 70, quando Eduardo Alexandre Garcia (o Dunga) idealiza a galeria do povo na praia dos artistas. Ela mergulha na década das Diretas Já e da explosão do BRock, passando pelo Festival de Arte de Natal (festival do forte) e pela publicação de revistas, fanzines e jornais alternativos como o Cacto (1979), ligado ao restaurante AMAI de Vésico Lisboa; Hotel de Estrelas (1983), Delírio Urbano (1985 – 1986) e Cebola faz Chorar (do final dos anos 80).

Na composição dessas escaladas, pelos percursos dessa cena, o professor Artemilson Lima levanta questões fundamentais para se compreender o fenômeno da contra cultura potiguar. Trafegando como um historiador Beatnik pela literatura de João Batista de Morais Neto, João Gualberto Aguiar, Carlos Gurgel e Socorro Trindad; traça as linhas da aventura visual dessa cena, por espaços heterotópicos, em que sonhos de emancipação daquela geração se constituíram, ao som do Gato Lúdico, no olhar gráfico de Novenil e Venâncio Pinheiro e pelo burburinho das performances de Jota Medeiros e Plínio Sanderson.

Um ponto extremamente importante da pesquisa de Lima é o de retomar a importância da figura de Walter Berbe, que nos anos sessenta foi um pioneiro do “hipismo” em Natal, tendo não apenas introduzido Véscio Lisboa na arte da macrobiótica, como influenciando toda uma geração “roqueira” da cidade, tanto com sua banda (The Berbes) quanto pela introdução de experiências sonoras psicodélicas em suas apresentações solo, no Festival do Sol (1972) e no Teatro Alberto Maranhão.

Ao citar a ação da COOART (Cooperativa de Artistas de Natal), uma entidade criada em 1982 para “catapultar a cena cultural na cidade” e que foi responsável pela ação de Artdoor ou Natal em Natal, em 1984; Lima traz à tona uma leitura muito certeira de um paradoxo da contra cultura natalense. Naquele ano, sessenta artistas plásticos e poetas visuais tiveram suas obras e intervenções estéticas expostas em Outdoors espalhados pela cidade, em uma ação que contava com a parceria do NAC (Núcleo de Arte e Cultura da UFRN), com a prefeitura de Natal e a empresa Bandeirantes de Outdoors. Apesar do sucesso da intervenção, como quase tudo que se faz nessa cidade soterrada por um sudário de areia e maresia, a ação não teve continuidade e a COOART teve de fechar em 1985 por falta de apoio dos órgãos públicos que não destinavam verbas para “poetas, escritores e artistas plásticos e tendências que fogem aos aspectos dos chamados ‘medalhões’” como apontava na Tribuna do Norte, no dia 15 de Setembro de 1985, o artigo assinado por Alex Medeiros, Venâncio Pinheiro e Plínio Sanderson, que atestava “tiro de morte na cultura potiguar”, com o encerramento das atividades da COOART.

O paradoxo seria esse: Natal teria uma cena contra cultural que, para se expandir e sobreviver, precisaria de apoio das instituições públicas de apoio a cultura. No fim das contas, o que aparentemente é uma contradição mortal (uma contra cultura que precisaria do apoio da cultura oficial para sobreviver) é, na leitura certeira de Lima, um dos indícios de que a cena natalense seria uma: “(…) manifestação local da contracultura, com características próprias, de igual modo, como parte inextricável de um movimento interno da cultura local (…)”. Desse modo os aspectos globais do fenômeno ganhariam uma tonalidade marcada pelas demandas e questões locais de um estado ainda sob domínio dos mandos e desmandos de oligarquias rurais.

Para não fechar esse pequeno comentário sem algum “porém”, senti falta de um mergulho mais aprofundado no periódico “A Margem”, publicado por Falves Silva, Anchieta Fernandes e Franklin Capistrano entre 1986 e 2006. Um jornalzine que fez história aqui pela Taba de Poty, trazendo o que de mais quente era produzido no campo da arte correio, poesia visual e poesia concreta. Também acho que o recorte da cena pensada por Artemilson Lima deveria ir um pouco além dos anos 80. Acredito que se um marco historiográfico de origem pode ser fincado na Galeria do Povo, em 1977; o marco de encerramento dessa cena deveria ser ancorado no fechamento da Bodega da Praça na Vila de Ponta Negra e a abertura do Blackout na Rua Chile na metade dos 90. De modo que muitas produções da cena do início dos anos 90, poderiam também estar presentes nesse recorte.

Em certo sentido foi realmente a abertura do Blackout e o fechamento da Bodega (quase na mesma época) que deslocou o espaço heterotópico de rebelião da cidade, da linha litorânea que unia a praia dos artistas até o pé do morro do Careca, para as ruas da velha ribeira na virada do milênio.

Mas essa é uma outra história, e como a história é essa rua de mão única sem direito a retorno, a gente fica com o gosto da memória de quem viveu aqueles anos selvagens e românticos em uma Natal que, a despeito do próprio provincianismo, se trajava com os ares da revolução contra cultural que percorreu o mundo como uma onda, energizando, psicodelicamente o planeta em uma mesma rede global heterotópica de sonhos.

PS .: quem se interessar em adquirir o livro do professor Artemilson Lima pode entrar em contato direto com o autor pelo Instagram ( @artemilsonlima ), Facebook (Artemilson Lima) ou mesmo na Cooperativa Cultural da UFRN, Sebo Balalaika ou na Casa do Cordel.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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1 Comment

  • Muito bom o livro de meu amigo pessoal Artemilson. O comentário também. Sou dessa época. Aqui cheguei em 1975 para trabalhar com Zé Paizinho na Ribeirão com serigrafia. Vivi realmente aquela Natal também do Beco da Quarentena e dos cabarés da Ribeirão. Vi muito os porres dos intelectuais no largo da antiga rodoviária onde morei por três anos.

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