Envelhecendo whiskies em barris que continham cerveja do estilo IPA

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Saudações, “whisqueiros”!

Interessante notar como a cultura cervejeira se expande, e como em seu movimento de crescimento ela atinge a cultura de outras bebidas alcoólicas. No caso do tema do texto de hoje, falaremos de alguns experimentos no mundo do Whisky, em particular, de alguns destilados que se valem da influência da cultura cervejeira.

O caminho inverso é bem mais comum. Por ainda ser uma cena e um contexto ainda em franco crescimento, é mais usual que a cultura cervejeira seja influenciada por outras culturas etílicas mais bem estabelecidas, como, por exemplo, a dos vinhos e também a do Whisky.

Tal assertiva tanto é verdadeira que é bem corriqueiro ver que a maioria das cervejas que passam por algum tipo de envelhecimento (barrel aging) em barris de carvalho costumam se valer de barris que anteriormente continham Whisky (ou Bourbon, que é a “variante americana” e próxima do destilado de origem escocesa). Assim, o sentido do movimento usual de influência é da cultura do Whisky para a cultura cervejeira.

Todavia, há alguns casos que o caminho traçado é o inverso, e é desses exemplos que vamos nos dedicar a falar na coluna de hoje, casos em que o destilado foi “envelhecido” (explicaremos mais adiante o porquê do uso das aspas, já que o líquido foi apenas “finalizado”) em barris que anteriormente continham cerveja. Discutiremos até que ponto a influência da cerveja é perceptível no resultado final desses exemplares de destilado.

Por mais que o termo “whiskies barrel aged IPA” não seja semanticamente o mais correto, é o que mais impacta terminologicamente. De modo sintético, vamos abordar alguns exemplos de Whisky que foram finalizados em barris que um dia contiveram cervejas do estilo India Pale Ale (IPA).

Assim, abra sua cerveja, ou coloque uma dose de Whisky, e nos acompanhe na leitura de hoje!

Whisky, Whiskey ou Usquebaugh

O Whisky ou Whiskey é um destilado de grãos, o qual, na maioria das vezes, tem em sua composição cereais maltados.

Originalmente, no gaélico, era escrito como Usquebaugh, sendo a grafia atual uma corruptela desse termo, que, ao pé da letra, significa água da vida (traduzindo, diretamente, para o português seria “cachorro engarrafado”).

A grafia, que varia entre Whisky e Whiskey tem a ver com o local onde o destilado é produzido. Para os produtos advindos dos Estados Unidos e da Irlanda, costuma-se escrever com o “e”, grafando-o como Whiskey. Para os produtos de origem escocesa ou japonesa, a grafia é mais tradicional: Whisky.

Um elemento de confluência entre o Whisky ou Whiskey é o envelhecimento em barris de madeira, haja vista que esse é um dos conceitos centrais do destilado em apreço. Aproximadamente 60% do aroma e do sabor de um Whisk(e)y advém do barril (ou dos barris) onde o líquido é envelhecido.

Tal questão do envelhecimento é tão salutar que, pela lei escocesa, um Whisky deve ter sido envelhecido por pelo menos 4 anos para que seja assim considerado. Caso não atinja os 4 anos estabelecidos, ele não pode ser considerado um “Whisky” propriamente para fins comerciais, e deve ser comercializado apenas como “destilado”.

Envelhecimento do Whisky (Finalização) em barris que continham Cerveja

A quantidade de usos do barril é um fator determinante para saber o quanto de aroma e de sabor ele é capaz de transferir ao líquido que será nele acondicionado. Portanto, um barril de primeiro uso tende a ser mais potente nessa funcionalidade que um de segundo uso, e assim por diante.

Resumidamente, quanto mais utilizado para envelhecimento de alguma bebida alcoólica, menos potente será a capacidade do barril em transferir suas características organolépticas.

Essa mesma lógica deve ser aplicada quando já aconteceu o envelhecimento de alguma bebida e se pretende fazer com que outra adquira as características da primeira. Exemplificativamente, quando uma cerveja foi envelhecida em um barril de carvalho e esse mesmo barril será utilizado para envelhecer um Whisky.

Ainda que se trate de um barril de primeiro uso, a cerveja não é uma bebida de grande retenção das qualidades do barril, como o Whisky ou o vinho o são. Ademais, o estilo de cerveja que foi envelhecido poderá influenciar no quanto será transferido para a bebida seguinte, já que a densidade do líquido é um fato preponderante de persistência no envelhecimento, tanto quanto a porosidade do barril.

Desse modo, um Whisky é um destilado que sofre muito mais a influência do barril propriamente (com notas amadeiradas, de coco e de baunilha) do que do líquido que havia no barril anteriormente. Isso ocorre, principalmente, quando se trata de uma cerveja, dotada de notas muito menos dominantes que aquelas advindas da madeira do barril.

Tal fato é ainda mais relevante quando se trata apenas de uma “finalização”, a qual dura de 3 a 6 meses (em regra), sendo que o período total de envelhecimento é de, no mínimo, 4 anos. Ou seja, a “finalização” transfere muito pouco do líquido original para o resultado final pretendido.

A influência da mera finalização é ínfima no resultado final.

Alguns exemplos de Whiskies Barrel Aged IPA

Como já denotado, a influência de um barril que continha cerveja anteriormente tende a ser mínima, ainda mais quando a bebida seguinte a ser acondicionada e envelhecida no mesmo barril é um destilado potente como o Whisky.

Ainda assim, existe dois exemplos no mundo do “cachorro engarrafado” que são bastante singulares nessa empreitada de envelhecer o destilado em barris que um dia contiveram o líquido preferido das massas. Mais especificamente, os barris em apreço continham anteriormente cervejas do estilo India Pale Ale (IPA), ou algo parecido com isso.

Inicialmente, pode-se dizer que a escolha por cervejas do estilo IPA não é a mais indicada para tanto. O principal motivo para se depreender pelo equívoco é que as cervejas IPA’s possuem como principal característica aromática as notas lupuladas, sejam elas cítricas, herbáceas ou resinosas.

Ademais, a rapidez com que essas notas lupuladas se degradam ou se oxidam é estonteante. Elas acabam sendo pouco persistentes em termos duradouros naquilo que o barril pode oferecer.

De toda forma, vamos comentar detidamente sobre os dois exemplos referidos: o Whiskey irlandês Jameson Caskmates Edition IPA e o Whisky escocês Glenfiddich IPA Experiment. Traremos os pormenores de produção e de análise sensorial de cada um deles para uma melhor compreensão sobre o tema abordado.

Jameson Caskmates Edition IPA

A destilaria irlandesa Jameson já possuía desde 2013 uma versão de seu blended Whiskey finalizado em barris que anteriormente continham uma cerveja do estilo Stout da Franciscan Well Brewery, uma cervejaria irlandesa parceira deles.

Alguns anos depois, a destilaria resolveu repetir o experimento utilizando barris da Eight D Brewing que anteriormente continham genericamente uma “Pale Ale”, a qual eles denominaram de “Irish Pale Ale”, tecnicamente, um estilo que não existe, e que pela sigla (IPA), confunde com a famosa India Pale Ale (também assinalada como IPA).

As Pale Ale’s, de modo geral, são bem menos “potentes” que as IPA’s. Possuem uma carga lupulada muito menor, e, assim, sua expressão aromática e de sabor é bem mais contida. De toda maneira, a Jameson, em seu marketing, informa que o Whiskey foi “finalizado” nesses barris que continham a cerveja em apreço e que isso resultou em notas “florais, cítricas e de lúpulo, com traços sutis de frutos do pomar, complementadas por um gosto de frutos secos e aparas de madeira”.

Soa como um engodo.

No final das contas, essa descrição é muito mais marketing do que realidade. A finalização de aproximadamente 3 meses nos barris que continham a famigerada Irish Pale Ale não é capaz de conferir tantas notas lupuladas assim. Aliás, o próprio Whiskey “regular” (que é a base desse finalizado em barris ex-IPA) já é um blend bem básico e pouco atrativo.

O resultado final não é muito diferente da versão original do Whiskey. As ligeiras notas cítricas alardeadas na publicidade são praticamente inexistentes, talvez, se você fizer um esforço imaginativo consiga encontrá-las por sugestão. Derradeiramente, a influência do barril ex-IPA (que nem é aquela IPA propriamente dita) passa bem longe de ser algo predominante ou um diferencial por si só.

Glenfiddich IPA Experiment

De maneira muito similar, a destilaria escocesa Glenfiddich também elaborou um Whisky que passou por envelhecimento em barris de carvalho que anteriormente continham uma cerveja. A diferença primordial, quando comparado com o caso da Jameson, é que a Glenfiddich, de fato, realmente utilizou um barril que outrora já abrigou uma cerveja do estilo India Pale Ale, e não algo similar para maquiar a sigla (IPA)…

Outra singela diferença consiste no fato de que o Whisky utilizado como base para o envelhecimento em barris de carvalho que continham a cerveja IPA é um single malt (na Jameson, era um blended Whiskey). Sem entrar em pormenores do destilado em apreço, vamos apenas trazer a conceituação de que o Whisky single malt é quando se usa apenas um único grão maltado, oriundo de uma única destilaria.

Ele tende a ser superior aos blends, que podem se valer de vários tipos de grãos ou misturar single malts de várias destilarias, a depender de seus processos de produção. No caso da Glenfiddich, ela mesma produz um único tipo de grão maltado e o utiliza na base do destilado a ser envelhecido.

Há de aportar a informação que o Whisky base da Glenfiddich 12 anos (o mesmo que é finalizado nos barris ex-IPA) já possui algumas notas cítricas e algumas tonalidades carameladas que podem ser confundidas com as notas sensoriais que o barril ex-IPA em apreço é capaz de conferir. Em uma análise mais detida e comparativa entre ambos, é bastante difícil, para não se dizer impossível, asseverar se tais notas no Glenfiddich IPA Experiment advém do envelhecimento ou não.

O processo de oxidação do lúpulo é muito rápido e tende a degradar as aludidas notas cítricas muito rapidamente. O que o barril ex-IPA é capaz de fornecer, na prática, são as notas comuns advindas do carvalho: amadeirado, caramelo e baunilha. Nada além do que um barril de primeiro uso já provisionaria ao destilado.

O fato de a finalização do envelhecimento ser em um barril ex-IPA pouco contribui para o resultado final, que é muito similar à versão 12 anos do Whisky Glenfiddich. Algo que pode ser comprovado quando se degusta os dois simultaneamente (como eu o fiz).

Saideira

O mundo do Whisky e o mundo da cervejas são dois mundos fantásticos! Confesso que conheço muito menos o mundo do “cão engarrafado”, e minhas considerações feitas sobre os Whiskies no texto de hoje beiram o patamar do que é leigo.

Todavia, algo pode ser concluído com um grau de certeza elevado: barris ex-Whisky para o envelhecimento de cervejas são muito mais proveitosos que o inverso. O mundo da cerveja tem muito mais a se aproveitar de barris que anteriormente continham Whisky do que o mundo do Whisky tem a se valer de barris que um dia armazenaram cervejas.

A diferença na sutileza e na potência do envelhecimento em cada um dos casos é abissal. O Whisky consegue imprimir notas muito mais marcantes na cerveja porque é uma bebida muito mais pujante, fato! O inverso se torna praticamente incipiente, cervejas não são capazes de agregar nem 1% do que um barril ex-Whisky é capaz de fazer no envelhecimento de uma boa cerveja.

No final das contas, parece que esse tipo de Whisky finalizado em barris ex-IPA tentam apenas fazer o marketing para vender o destilado para o público cervejeiro, já que não conseguem convencer os bebedores de Whisky a comprar tais produtos.

Recomendação Musical

Não tenho muito a dizer sobre a recomendação musical de hoje: é uma música de uma das maiores bandas do mundo, o Metallica!

Talvez não seja a música mais conhecida da banda, todavia, Whiskey in the Jar foi um sucesso na época do seu lançamento e casa perfeitamente com o tema de hoje!

Saúde!

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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5 Comments

  • Leandro Kind

    Bela recomendação musical! Mas essa música não é do Metallica não. Hehe!

    “A versão do Metallica é uma releitura mais pesada da faixa gravada pelo Thin Lizzy em 1973 no disco “Vagabonds of the Western World”, porém a primeira vez que essa faixa foi apresentada ao mundo foi através da banda “The Dublins” em 1960.”

    Fonte: https://whiplash.net/materias/curiosidades/317639-metallica.html

  • Gustavo Fonseca

    Excelente artigo. Uma sugestão de pauta: abordar a crescente prática das cervejarias em ” empurrar” packs de cervejas. Spartacus, Croma, Trilha, Dude tem feito muito isso. É imitação de cervejaria hringa? Não sei…

    • Lauro Ericksen

      Obrigado pela leitura e pelo comentário! Que Bom que você gostou do texto!
      Adorei a sugestão, achei o tema bem pertinente!
      Escreverei sobre isso em breve e fico aberto à receber mais sugestões de temas (e eventuais críticas também). O objetivo é sempre trazer melhores conteúdos, polêmicos ou não.

      • Gustavo Fonseca

        Valeu. Essa prática de packs pode ser vista como venda casada. A croma botou hoje duas BA que só podem sem adquiridas num pack…. abs

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