Crônica da utopia revisitada – um encontro com Oscar Niemeyer

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por Wilson Coêlho

03 de maio de 2011. Aeroporto Tom Jobim, mais conhecido como Galeão, no Rio de Janeiro. Fernando Arrabal e eu vínhamos de Porto Alegre, onde o dramaturgo espanhol fez uma conferência e eu, privilegiadamente, cumpri o papel de mediador. Tínhamos um encontro com o arquiteto Oscar Niemeyer e corríamos o risco de chegarmos atrasados.

Durante a espera das bagagens que eram desembarcadas do avião, deslizando na esteira rolante, por diversas vezes, tentamos fazer contato por telefone com o grande mestre em seu apartamento em Copacabana. Falamos com algumas pessoas e, dentre estas vozes, julgamos que a última seria a do próprio arquiteto que nos tranquilizou ao afirmar que não haveria problemas com o atraso e que estaria nos esperando na hora que nos fosse melhor.

Ainda no taxi, quando nos dirigíamos a Copacabana, Fernando Arrabal me perguntou:

– Em que hotel ficaremos?

Entre a perplexidade e o inseguro diante da circunstância e por não ter outra resposta, eu lhe disse:

– Não temos um hotel.

Ainda acrescentei justificando que eu não havia conseguido uma reserva em nenhum hotel por não possuir um cartão de crédito para pagar antecipadamente as diárias. Preocupado com a rigorosidade patafísica de meu amigo, achei que tinha provocado um incômodo e que eu lhe pareceria um tanto quanto desorganizado, considerando que fui eu quem tinha sido encarregado de marcar e tomar providências para este encontro. Mas para meu espanto e satisfação, ele apenas retrucou:

– Que emocionante!

O táxi parou na Avenida Atlântica, em frente ao número 3.940, Edifício Ypiranga. Desembarcamos e, depois de alguns minutos frente ao prédio tirando fotos, atravessamos a avenida, tomamos uma cerveja no quiosque do calçadão e nos informamos sobre a existência de hotéis nas proximidades. Caminhamos mais ou menos um quarteirão e meio e conseguimos vaga no terceiro hotel consultado. Guardamos as bagagens e fomos ao encontro.

Já na portaria, nos anunciamos e fomos convidados a subir ao apartamento de cobertura. Na porta do apartamento, tirei umas fotos de Arrabal diante de esboços de algumas obras de Niemeyer num painel encostado na parede. Toquei a campainha e, logo depois, a porta se abre e somos recebidos por Vera Niemeyer, a mulher do arquiteto, e dois de seus assessores.

Depois de uns minutos em que olhamos o mar do alto do edifício, parecia que a verticalidade se despedaçava no horizonte sem fim onde o mar e o céu pareciam se confundir. Novamente, tiramos algumas fotos diante de alguns de seus esboços e uma escultura de Dom Quixote, até que fomos chamados a estar com o grande mestre.

Entramos e, em princípio, era como o personagem de “Apocalipse Now” diante de Marlon Brando. Apertos de mãos. Abraços e apresentações. Fernando Arrabal havia me confiado a tarefa de eternizar esse momento. Armei a câmera filmadora e deu-se o evento. Eu me sentia diante do sublime, como se fora a passagem de um cometa que acontece a cada centena de anos ou um terremoto, sei lá. Arrabal instigava a memória de Niemeyer até que ele, aos poucos, ora em francês, ora em espanhol, se abria rompendo os limites do tempo. O passado e o futuro em Niemeyer escapavam como o mercúrio entre os dedos. Tudo era presente, ao vivo. Desde sua estada em Paris, o bairro em que morou, seu sonho comunista, seus projetos e, sem muitos detalhes, mencionou André Malraux.

Arrabal anunciou o reconhecimento e a admiração que a obra de Niemeyer significava aos franceses. E, solenemente, num simples e objetivo discurso, entregou-lhe o diploma da Ordem da Gidouille, do Collège de Pataphysique, nomeando-lhe “Batisseur d’Utopies” (Construtor de Utopias).

Eu ficava dividido entre olhar através do visor da câmera e assistir a cena em aberto, sem o obstáculo das lentes, essa inenarrável panorâmica.

Niemeyer mostrou-se encantado, mesmo contido em seus 103 anos de idade, quando se supõe que não existem mais novidades. Mas era visível que se contentava com esse reconhecimento ao seu trabalho.

Depois, Arrabal lhe comunica do convite de Juan Carlos Valera Saiz para realizar uma edição de bibliofilia em MENÙ – Cahier de Poèsie (Caderno de Poesia). A edição com esboços de Niemeyer e poemas de Arrabal, numa caixa-livro de cristal e aço com estruturas encaixadas para recordar um livro aberto, com tiragem de 16 exemplares não comercializáveis.

Por outro lado, Niemeyer também convida Arrabal para escrever um artigo para NOSSO CAMINHO, “Revista de Arquitetura, Arte e Cultura”, dirigida por Oscar e Vera Lucia G. Niemeyer. O tema deve ser sobre guerra, coincidindo, inclusive, com o fato de que a peça “Piquenique no front”, escrita por Fernando Arrabal quando tinha 14 anos está sendo montada em diversas partes do mundo, principalmente, nas zonas de conflito como Líbia e outros países da região.

Continuando a conversa e, ainda instigado por Arrabal, Niemeyer fala do Brasil, seu apoio ao ex-presidente Lula e da atual presidenta Dilma, declarando ter percebido a especial atenção desses governos para com o povo. A partir daí confessa uma espécie de frustração em relação ao destino de suas obras, declarando que sempre teve a intenção de fazer uma obra popular, mas que – desgraçadamente – o povo sempre teve pouco acesso a estas, ficando restritas aos grandes capitalistas e aos governantes.

Depois, confirmando outra vez o mérito pelo recebimento do diploma de “Construtor de Utopias”, declara que em sua obra nunca teve a pretensão de ser utilitarista, pois tudo o que fez foi tentar aproximar a arquitetura da arte e da cultura.

Ainda, analisando a relação entre sua ideia colocada no papel e a realização sempre tiveram uma certa distância. Mas afirma seu contentamento com a realização de sua obra no Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer, da cidade espanhola de Avilés, colocando-a no plano da mais eficiente como possibilidade da aproximação entre a ideia e sua concretização. Coincidentemente, foi justamente esta obra que também encantou Arrabal e que deu origem ao desejo de que este encontro acontecesse.

Sinceramente, depois disso, desisti do simples papel de testemunha e resolvi me integrar à cena. Desliguei a câmera e me sentei entre os dois grandes mestres. Entreguei “Maomé vai a Montaigne” autografado para Niemeyer e, em seguida, a revista Zênith com uma entrevista dele, publicada na Serra, onde também será realizado um de seus projetos.

Por fim, também convidado por Arrabal, terminamos nosso encontro revivendo antigos momentos, de mãos dadas e erguidas, cantando trechos da Internacional Socialista. Estavam ali três gerações eliminando as diferenças e o tempo e… afirmando que o sonho não acabou.

Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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