por Manoel Onofre Jr.
Em seu livro “As Amargas, não…”, Alvaro Moreyra diz a certa altura:
– “Come-se mal nos livros de Machado de Assis…”
Pois, digo eu: come-se muito bem nos livros de Eça de Queiroz.
Eça, ao que tudo indica, era um gastrônomo de primeira, haja vista a descrição que faz de inúmeras especialidades, sobretudo da cozinha portuguesa, de modo a deixar o leitor com água na boca.
Dia desses, dei-me ao trabalho de selecionar alguns trechos dessa riqueza culinária contida em cinco dos seus romances: “O Crime do Padre Amaro”, “O Primo Basílio”, “A Cidade e as Serras”, “A Relíquia” e “A Capital”. Transcrevo-os a seguir, sem maiores pretensões.
Bom apetite, leitor.
I
Em “O Crime do Padre Amaro”, o personagem Cônego Dias, referindo-se aos dons culinários de sua outonal amada, a S. Joaneira, afirma:
“Não há dia que me não mande o seu presente. É o covilhete de geléia, é o pratinho de arroz-doce, é a bela morcela de Arouca! Ontem me mandou ela uma torta de maçã. Ora, havia de você ver aquilo! A maçã parecia um creme! Até a mana Josefa disse: ‘Está tão boa que parece que foi cozida em água benta.'”
Morcela, diga-se de passagem, é uma espécie de embutido à base de sangue de porco; tinha fama a que era feita na cidade de Arouca, situada na região das Beiras, Portugal.
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No primeiro jantar do Padre Amaro em casa da S. Joaneira:
“Da terrina subia o vapor cheiroso do caldo, e na larga travessa a galinha gorda, afogada num arroz húmido e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma aparência suculenta de prato morgado.”
Num sarau em casa da S. Joaneira, os convivas tomam chá e se deliciam com torradas:
“Vai um docinho, senhor pároco? – disse Amélia, apresentando-lhe o prato. – São da Encarnação. Muito fresquinhos.
– Obrigado.
– Aquele ali. É toucinho do céu.”
“Encarnação” deve ser o nome de algum convento. Toucinho do céu: um dos mais apreciados doces conventuais, feito com gemas de ovos, amêndoas e açúcar.
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“Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã, depois do seu almoço de açorda, caiu de repente morto com uma apoplexia.”
Açorda, prato tradicional da cozinha portuguesa, é um caldo engrossado com miolo de pão, em que entram, como temperos, alho, coentro e azeite.
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“O abade da Cortegaça, ‘passava por ser o melhor cozinheiro da diocese’. Todo o clero das vizinhanças conhecia a sua famosa ‘cabidela de caça’. (…)’ Vivia tão absorvido pela sua ‘arte’ que lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fiéis ajoelhados para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho.”
Sarrabulho: ensopado feito com o sangue coagulado do porco, carne, fígado, banha e condimentos, especialmente cominho.
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Padre Amaro, Cônego Dias, Padre Natário e outros da roda de conversa discutiam assuntos de religião.
“Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa de arroz-doce.
– Não falemos nessas coisas, não falemos nessas coisas – disse logo prudentemente o abade. – Viemos ao arrozinho. Gertrudes, dá cá a garrafinha do Porto!”
Porto, vinho do Porto, o mais famoso vinho de Portugal. A elaboração deste precioso néctar segue processo sui generis: ao mosto (suco fermentado) de uvas selecionadas do Vale do Douro adiciona-se aguardente vínica, que suspende a fermentação, aumentando o teor alcoólico e conservando o açúcar da uva. Há comumente três qualidades de vinho do porto: ruby, encorpado e frutado, de coloração vermelha; tawny, menos doce e mais leve; branco, de dois tipos: seco e doce. Servido após as refeições, como digestivo, o vinho do Porto também é muito apreciado como aperitivo, especialmente o branco. À mesa, acompanha queijos, doces, etc.
II
Em “A Cidade e as Serras”, romance da sua última fase, tido e havido como obra-prima, Eça reconcilia-se com Portugal. Até então toda a sua obra de ficção, retratando a sociedade portuguesa da sua época, tinha o espírito do ridendo castigat mores. Com “A Cidade e as Serras” ele muda, transforma-se; já não é o ironista ferrenho, o crítico social implacável, mas reencontra, desarmado, sua terra e sua gente, e exalta os seus valores, inclusive a culinária típica.
O personagem/narrador, Zé Fernandes, diz a certa altura:
“Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Há quantos anos não a provava, nem o leitão assado, nem o arroz de forno da nossa casa!”
No palacete do amigo Jacinto, em Paris:
“…chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encomendara pelo Grilo ao nosso magistral cozinheiro uma larga travessa de arroz-doce, com as iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da nossa meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina de marfim onde no 202 se escreviam os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor a ideia patriarcal:
– Arroz-doce! Está escrito com dois “ss”, mas não tem dúvida… Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz-doce! Desde a morte da avó.”
Vivente de Paris, habituado aos luxos e confortos da “civilização”, o amigo Jacinto retorna a Portugal em busca de sua terra, a bucólica herdade de Tormes, na região do Baixo Douro: pouco a pouco ele se deixa cativar pela simplicidade da vida campesina.
No primeiro jantar em Tormes:
“Jacinto (…) desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia (…) Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.”
(………)
“… e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas.”
Jacinto, entusiasmado, não se contém e diz:
“– Deste arroz com favas nem em Paris, Melchior amigo!”
(……….)
“Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: – divino!”
Jacinto conversando com Zé Fernandes:
“- E também me parece que andamos léguas. Estou derreado. E que fome!
– Tanto melhor, para as trutas, e para o cabrito assado que nos espera.
– Bravo! Quem te cozinha?
– Uma afilhada do Melchior. Mulher sublime! Hás de ver a canja! Hás de ver a cabidela!
(……….)
Com efeito! Horácio dedicaria uma ode àquele cabrito assado num espeto de cerejeira. E com as trutas, e o vinho do Melchior; e a cabidela, em que a sublime anã de olhos tortos pusera inspirações que não são da terra (…)”
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Num jantar em casa de Zé Fernandes, para apresentar Jacinto aos amigos do anfitrião:
“…à mesa, onde os pudins, as travessas de doce de ovos, os antigos vinhos da Madeira e do Porto, na suas pesadas garrafas de cristal lapidado, fundiam com felicidade os seus tons ricos e quentes (…)
E a sopa, que era de galinha com macarrão, foi comida num tão largo e pesado silêncio que eu, na ânsia de o quebrar, exclamei, ao acaso, sem pensar que me achava em Guiães depois de tanto tempo e em minha própria casa:
– Deliciosa, esta sopa!
Jacinto ecoou:
– Divina!”
(………..)
“Eu, sempre na ânsia de espiritualizar o banquete, de produzir conversação, ataquei com desabrida alegria a Sra. D. Luiza por ela assim defender a profanação do nosso grande acepipe nacional!” (o arroz-doce).
(…………)
“…no desabado daquele silêncio cerimonioso, que viera pesando cada vez mais desde a sopa até aos frangos guisados.”
(…….)
“Todos os olhares se desviaram para o meu Jacinto, que se servia de ervilhas (…)”
(…….)
“…todos (…) se lançaram nas conversinhas discretas, a que o champanhe, agora, depois do assado, dava mais viveza.”
Terminado o banquete, com os convivas já na sala de visitas:
“…a tia Vivência apressara o chá, que o Manuel, seguido pela Gertrudes, com a bandeja de bolos, já começava a servir às senhoras.”
III
O “grande acepipe nacional” também aparece no romance “A Relíquia”, duas vezes servido em jantares na casa da sra. D. Patrocínio das Neves, a titi do Raposo, o personagem principal:
“A Vicência ofereceu o arroz-doce. Nós rezamos as graças.”
“Longas horas nos detivemos à mesa – onde a travessa de arroz-doce ostentava as minhas iniciais, debaixo de um coração e de uma cruz, desenhadas a canela pela titi.”
IV
A trama do romance “O Primo Basílio” é um caso de adultério: Luisa trai o marido Jorge, tornando-se amante do primo Basílio. Dois outros personagens, embora secundários, ganharam relevo – a criada Juliana e o conselheiro Acácio – magistralmente caracterizados. Obra realista por excelência, “O Primo Basílio” figura ao lado de “Os Maias” e “A Cidade e as Serras”, como um dos melhores romances de Eça.
No chá em casa de Jorge e Luísa, a criada
“Juliana pousava sobre a mesa o prato das fatias, os biscoitos de Oeiras, os bolos do Cocó.”
Leopoldina (a dissoluta amiga de Luísa)
“Tinha de se ir já! Fazia-se tarde, senão o outro (o marido) punha-se à mesa. Tinha um ruivo assado para o jantar. E peixe frio era a coisa mais estúpida!”
Leopoldina, em casa de Luísa, ao jantar:
“E como Juliana (a criada) entrava com o bacalhau assado, fez-lhe uma ovação:
– Bravo! Está soberbo!
‘Tocou-lhe com a ponta do dedo, gulosa; vinha louro, um pouco tostado, abrindo em lascas.
– Tu verás – dizia ela. – Não te tentas? Fazes mal!
Teve então um movimento decidido de bravura, disse:
– Traga-me um alho, senhora Juliana! Traga-me um bom alho!”
O bacalhau parece ser o prato número um da culinária portuguesa. Preparado de várias maneiras – à Gomes Sá, com rodelas de batata ou à lagareiro, regado de azeite, por exemplo – come-se muito bacalhau em Portugal.
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O Conselheiro Acácio talvez seja o mais famoso personagem criado por Eça: tornou-se, com o passar do tempo, uma espécie de estereótipo: quando se quer designar pessoa medíocre, conservadora e formalista, de retórica oca, cita-se o conselheiro Acácio. Num jantar em casa dele:
“…o Alves Coutinho extasiou-se sobre a abundância das travessas de doce; havia creme crestado a ferro de engomar; um prato de ovos queimados, aletria com as iniciais do conselheiro desenhadas a canela.”
(……)
“As colheres de prata, remexendo devagar a sopa muito quente, agitavam os longos canudos brancos e moles de macarrão.”
E o conselheiro Acácio diz:
“- Pode ir trazendo o cozido, senhora Filomena… – Mas detendo-a, com um gesto grave: – Perdão, com franqueza, preferem o cozido ou o peixe? É um pargo.”
(……..)
“Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate (…)”
(……)
O conselheiro
“Ia fulminar a doutrina ultramontana – mas a senhora Filomena colocou-lhe diante a travessa com a perna de vitela assada.”
(……)
“O Alves Coutinho (…) discutia gulodices. Indicava as especialidades. Para os folhados, o Cocó! Para as natas, o Baltreschi! Para as gelatinas, o largo de São Domingos!”
“O café foi servido na sala.”
“E a senhora Adelaide pode trazer os licores – disse à Filomena.”
Duas especialidades feitas com natas, muito apreciadas: pastel de Belém e bacalhau com natas. O pastel à base de massa folhada e creme, tem a forma das nossas empadas.
V
O romance “A Capital”, obra póstuma, contém apenas três referências à cozinha portuguesa, mas só menciona uma iguaria típica.
O personagem Meirinho planeja o jantar, em que o personagem principal, Artur, terá oportunidade de ler suas criações literárias para algumas das mais influentes personalidades de Lisboa.
“- Uma coisa elegante – dizia – duas sopas, hors-d’oeuvres, duas entradas, assado, caça, entremets, um jantarzinho para quinze libras…”
“O jantar no Cruz foi triste (…) E Melchior, lúgubre, só repetiu o paio com ervilhas, porque, disse – “era um prato que lhe fazia bem à alma.”
“…as raparigas vozeavam também, oferecendo mexilhões e ovos moles de Aveiro.”
Gema de ovo e açúcar são os ingredientes dos ovos moles. No romance “Os Maias”, diz Eça: É um doce muito célebre, mesmo lá fora. Só o de Aveiro é que tem “chic”.
Numerosas confeitarias, no centro da cidade de Aveiro, fabricam e vendem ovos moles, nas duas formas tradicionais: em pequenas barricas, adornadas com ingênuos desenhos, e como recheio de doces em formatos variados (conchas marinhas, búzios, peixinhos) feitos com massa de hóstia.
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Está visto de relance algo do Eça de Queiroz gastrônomo, apreciador da culinária da sua terra. Voltaremos ao assunto, tendo em mira os romances “A Ilustre Casa de Ramires” e “Os Maias”, para uma releitura anotada.