Já pensou na maravilha de pisar o chão de um teatro pela primeira vez? Agora pense que muitos nunca tiveram essa oportunidade. Melhor: pensem que por décadas foram proibidos de entrar. O documentário do show AmarElo, de Emicida, no Theatro Municipal de São Paulo vai léguas à frente de um mero show. E vai além, também, de um documento poético e divertido de se ver. É muito mais um tapa na cara da sociedade racista e um grito contextualizado e histórico da negritude.
O discurso desse primeiro parágrafo pode soar banal, costumeiro. A pauta antirracista é razoavelmente bem discutida. Mas o que se vê nesse doc é um conjunto de resgates históricos de pessoas e fatos que constroem um quebra-cabeça da secular trajetória opressora contra o negro. Mas sem vitimização. Pelo contrário, a mensagem é de união e força, de inúmeros exemplos de coragem retratados e reverenciados. Gente camuflada pela pele negra, contra a vontade, apenas pela cor.
A presença de velhos integrantes do Movimento Negro Unificado (MNU) no Theatro é emocionante. Há imagens da luta deles desafiando a ditadura militar brasileira para lutar por equidade racial. Eles foram homenageados pelo cantor durante a apresentação.
“Para que a gente esteja nesse lugar que foi negado aos nossos ancestrais, muitas pessoas suaram e sangraram no caminho. Se hoje a gente sorri dentro do Theatro Municipal, é porque algumas pessoas no auge da ditadura militar tiveram a coragem de se levantar contra o estado brasileiro e seu racismo assassino e dizer que o país precisava reconhecer o protagonismo das pessoas de pele escura na sociedade brasileira. A nossa vitória não vale de nada se ela não anistiar o espírito de todas as pessoas que foram assassinadas durante cinco séculos de escravidão”, disse Emicida antes de anunciar os convidados e cantar a música “Pantera Negra”.
A metáfora do “poder da horta” citada no filme é bem oportuna. “E quanta reflexão maravilhosa está guardada dentro de uma semente”. E Emicida conclama a negritude a germinar, a renascer, a respeitar o tempo e se conectar com o ciclo da vida. E não só os negros, mas os excluídos. O canção-homônima que fecha o doc tem participação de Pablo Vittar e Majur entoando o grito de Belchior: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro!”.
E do samba vieram outros muitos. O rapper enaltece o gênero como poucos sambistas. Aliás, o doc é repleto dessas referências. E nelas o samba ganha uma sofisticação, eu diria, impensada. Emicida tem esse dom de, em sua transbordante humildade de origem e de ser, sofisticar as coisas, seja na sua música, no seu discurso ou nessas referências que cultua. Na verdade ele não sofistica, mas “apenas” abre os olhos dos mortais à real dimensão da coisa.
No doc, o monstruoso baterista Wilson das Neves vira rei, merecidamente. E uma Lélia Gonzalez ganha a notoriedade na luta pela democracia racial que poucos reconhecem. O ativista Abdias do Nascimento é lembrado pela criação do Teatro Experimental do Negro. A vanguarda da saudosa atriz Ruth de Souza é finalmente mostrada. E assim outros ícones sem iconografia escrita na história contada por brancos passeiam em tapete vermelho pelo filme.
Emicida é negro. E negro é tudo isso: é a origem do samba e do rap. O negro é suor, sangue e história tão bem representados e reverenciados nesse filme. O tema do antirracismo não só permeia cada segundo do doc, mas se infiltra na mente de quem assiste. Impossível reputar contra. Mesmo o racista orgulhoso e convicto se sente um pigmeu imundo. Quem simpatiza com a cultura afro, bate palma. E quem é entusiasta dessa riqueza, chora. E chora pela dor da história e pela beleza sublime de como ela é descrita e cantada no filme.
Eu chorei.