Dia Internacional da Mulher: feminicídio, direitos e luta

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Não as matem, pelo amor de Deus!

 Lima Barreto

 Ao contrário do que muitos pensam, o Dia Internacional da Mulher não é apenas uma data para festejar ou aquela ocasião em que as mulheres recebem flores, presentes (gestos que também têm sua importância e devem ser cultivados sempre, desde que acompanhados de atitudes respeitosas). É, sobretudo, um dia para lembrar a luta incessante da mulher por seus direitos, seja no mercado de trabalho, na academia, na política, na ciência, no esporte e em todas as áreas em que atua, muitas vezes fazendo o mesmo trabalho e ainda recebendo um salário inferior ao dos homens e/ou não sendo devidamente reconhecida em sua atuação profissional simplesmente por ser mulher. Isso para citar alguns exemplos da violência de gênero que sofremos diariamente.

São inúmeros os exemplos de desrespeito à condição feminina e de lutas constantes por mais espaço, por lugares de fala e, principalmente, pela preservação de nossas vidas. Sim, é isso mesmo, caro leitor e cara leitora. Vivemos num país perigoso para as mulheres, que são violentadas e mortas a todo instante. A internet, por exemplo, tornou-se um espaço extremamente arriscado para as mulheres quando estas decidem confrontar o patriarcado e lutar pelo fim da violência de gênero que oprime e mata mulheres todos os dias em nosso país. Outro dia escutei no noticiário que a cada dez minutos uma menina ou mulher é estuprada no Brasil. A cada seis horas acontece um feminicídio no país. O Brasil teve ao menos um caso de feminicídio por dia em 2022.

O Fantástico exibiu no último domingo uma reportagem sobre o tema da violência contra a mulher que acontece nas redes sociais, que aliás tem sido tornado cada vez mais comum. Um tema que deve ser discutido e levado a sério. Duas mulheres, uma atriz e uma influenciadora e feminista, mostraram os prints das ameaças sofridas por parte de um homem que se autointitula “coach da masculinidade” e sentiu-se incomodado com as postagens de ambas. Thiago Schutz, o acusado, oferece curso on-line sobre a filosofia dos red pills, homens que se julgam superiores às mulheres e alegam que o feminismo deve ser combatido, pois estaria oprimindo a classe masculina. Parece piada, mas esse é um movimento que tem ganhado cada vez mais adeptos nas redes sociais e fora dela. Eis a ameaça enviada às duas mulheres entrevistadas: “Você tem 24 horas pra retirar seu conteúdo sobre mim. Depois disso, processo ou bala. Você escolhe”. Ambas registraram queixa na delegacia e pediram medida protetiva contra o agressor, um tipo perigoso e cheio de imitadores Brasil afora.

Uma delas fez uma observação interessante, relatou sua preocupação com as mulheres que convivem com esses homens que propagam toda essa violência nas redes sociais (e certamente fora delas), naturalizando agressões verbais/ameaças a mulheres, principalmente aquelas que ousam “confrontá-los”, como foi o caso das entrevistadas. Um passo para a agressão física, como sabemos. Afinal, o ciclo perverso da violência geralmente começa com agressões verbais e descamba para outros tipos de violência (psicológica, moral, sexual, patrimonial), muitas vezes culminando no feminicídio.

Uma questão antiga que já preocupava o escritor carioca Lima Barreto. Em 1915, o autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Os Bruzundangas” e outros clássicos da literatura brasileira, escreveu: “Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada… O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo”. O excerto faz parte de uma crônica intitulada “Não as matem!”. Mais de 100 depois, a crônica de Lima Barreto continua atualíssima. Lamentavelmente.

Ocuparíamos a página inteira desta coluna com exemplos de violências diversas sofridas cotidianamente pelas mulheres no Brasil. Todos os dias vemos notícias de mulheres que foram/são vítimas de violência, muitas delas assassinadas, principalmente por seus companheiros ou ex-companheiros (muitas delas foram mortas porque estavam tentando romper o ciclo da violência e se desvencilhar de relações abusivas).

No último dia 03, uma jovem de 26 anos foi assassinada pelo namorado em Juazeiro do Norte, no Ceará. O rapaz, de 27 anos, cometeu suicídio. Ao que tudo indica, Yanny Brena teria terminado o relacionamento com o agressor/assassino. A motivação desse tipo de crime é quase sempre a mesma. Rickson Pinto, que se autodenominava “atleta de vaquejada” e vivia às custas da moça, médica, vereadora e presidente da câmara de vereadores da cidade. Ele já havia sido preso por porte ilegal de arma de fogo. Uma das amigas da vítima, em depoimento à polícia, disse que ela não aguentava mais pagar as contas do namorado. Ironicamente, a vereadora estava trabalhando na criação da Procuradoria da Mulher do município, que será inaugurada ainda esse mês. Que sua luta não seja em vão e que as mulheres possam ter o direito de romper um relacionamento sem que isso lhes custe a própria vida.

Mais um caso de feminicídio que escancara o terror vivenciado pelas mulheres vítimas de violência, uma realidade que aflige todas as classes sociais, sendo mais acentuada entre mulheres com menor grau de instrução, pretas e periféricas, conforme indicam alguns estudos. Um sinal de que é preciso investir mais em educação e em políticas públicas relacionadas a educação sexual, planejamento familiar, segurança pública, temas intrinsecamente ligados à questão da violência de gênero, que tem ceifado diariamente a vida de tantas mulheres em nosso país.

É importante lembrar, ainda, que violência contra mulher inclui: tentativa de feminicídio/agressão física; feminicídio; homicídio; violência sexual/estupro; tortura/cárcere privado/sequestro; agressão verbal/ameaça; tentativa de homicídio; transfeminicídio, bala perdida e outros.

Mas não adianta continuar com o mesmo discurso de sempre e enxergar a punição do agressor como único meio para combater a violência. Já ficou bem claro que esse não é o caminho. Machismo se combate com educação, que aliás deve começar ainda na infância, nos âmbitos doméstico e escolar. Aqui no Rio Grande do Norte estado existe um projeto que vem gerando resultados muito positivos no combate à violência de gênero. O Grupo Reflexivo de Homens é um projeto do Ministério Público do RN voltado para a educação e a reabilitação e reúne homens em processo judicial e envolvidos em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. A iniciativa é uma oportunidade de reflexão sobre masculinidade, papéis de gênero e comportamentos tóxicos. A militante feminista, advogada e assistente social Vani Fragosa abordou esse tema no livro “Violência doméstica contra a mulher – da invisibilidade à luta pela superação”, lançado em 2018, que é resultado de sua monografia no curso de Direito da UFRN.

Enquanto escrevia esta crônica, lembrei de várias mulheres importantes que encamparam a luta por igualdade de direitos em áreas diversas. Artistas, educadoras, sociólogas, cientistas, escritoras, sindicalistas, vereadoras, deputadas, prefeitas, senadoras, e tantas outras mulheres que lutaram e lutam pelo fim da violência de gênero, cada uma a seu modo e com as armas de que dispunham/dispõem, no intuito de construir uma sociedade mais humana, justa e igualitária. Alguns desses nomes: Frida Kahlo, Olga Benario, Pagu, Alzira Soriano, Celina Guimarães, Palmyra Wanderley, Leila Diniz, Lélia Gonzalez, Maria da Penha, Elizabeth Nasser, Rizolete Fernandes, Conceição Evaristo,  Ana Cláudia Trigueiro, Tereza Custódio, Ana Paula Campos, Bia Crispim, Ceiça Fraga, Diulinda Garcia, Fátima Medeiros, Jeanne Araújo, Izala Sarah, Verônica Campos.

Nísia Floresta (1810-1885) foi uma dessas mulheres. Cidadã do mundo, a educadora e escritora norte-rio-grandense que viveu mais de trinta anos na Europa, defendeu os direitos das mulheres, dos indígenas e dos escravizados. Nísia, que publicou 14 livros, entre eles “Diretos das mulheres e injustiça dos homens” e “Opúsculo humanitário”, participou ativamente das campanhas abolicionista e republicana e, mesmo vivendo distante de sua terra natal, sempre enalteceu as coisas boas do nosso Brasil, inclusive suas belezas naturais e sua gente.

Indico os estudos da professora universitária e pesquisadora Constância Lima Duarte, a quem desejar conhecer um pouco mais da vida e da obra da pioneira do feminismo no Brasil, uma mulher que foi vítima de memoricídio em virtude de uma cultura machista que não aceitava a ascensão feminina e tampouco suas ideias revolucionárias em prol de uma parcela da sociedade que ainda hoje é vítima de tanta injustiça e de tantas violências. Professora aposentada nos cursos de Letras da UFMG e da UFRN, estuda a obra de Nísia Floresta há mais de trinta anos. É apaixonante ver Constância falando sobre Nísia. Indico, principalmente, seu livro mais recente: “Nísia Floresta presente: uma brasileira ilustre” (Natal: Mariana Hardi, 2019). Quem sabe assim, teremos alguns motivos para celebrar o Dia Internacional da Mulher. Salve Nísia Floresta! Salve Constância Lima Duarte! Salve a mulher brasileira!

Andreia Braz

Andreia Braz

Escritora e revisora de textos.

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