Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.
Cecília Meireles
Lembro perfeitamente o dia em que ela chegou da maternidade. A cena era a seguinte: minha mãe, de pé, com ela nos braços e eu, admirada e querendo ver de perto aquele bebê que agora faria parte das nossas vidas. Ela estava com uma touca rosa na cabeça e enrolada em uma manta da mesma cor. Aquela imagem jamais me sairia da memória. Eu tinha apenas cinco anos de idade e não sabia que aquela garotinha nascida no dia de Santo Antônio mudaria para sempre a minha vida. Em homenagem ao santo casamenteiro, ela foi batizada Antonia Cristina, um desejo de nosso pai, que era um homem religioso e costumava batizar os filhos com nomes bíblicos ou de santos.
Apesar de ser apenas cinco anos mais velha, sempre cuidei de Cris porque minha mãe precisava trabalhar e não tinha com quem nos deixar, enquanto fazia faxinas ou lavava “roupas de ganho”, uma expressão em desuso que aliás acho muito bonita. Meu pai não morava conosco e eventualmente nos visitava. Algumas vezes, ela nos levava para as residências onde trabalhava (falei sobre isso em outra crônica). Lembro, por exemplo, de quando nos levava para a casa da minha tia Quitéria, irmã de meu pai, para quem lavava e passava roupas. Enquanto ela trabalhava, eu brincava com Cris. Geralmente, voltávamos para casa com comida e roupas doadas por minhas primas.
E assim foi durante nossa infância e adolescência. Era eu quem cuidava dela quando nossa mãe nos deixava sozinhas à noite, sem luz elétrica. Até hoje, Cris não dorme no escuro porque isso lhe faz lembrar as noites tenebrosas de nossa infância – quando nossa mãe saía sem hora para voltar. “Lembro de uma noite em que a vela apagou e ficamos no escuro”, diz minha irmã, tentando justificar o pavor da escuridão.
Talvez nossa mãe não tivesse total dimensão do que estava fazendo, dos riscos a que estavam expostas duas crianças dormindo sozinhas à luz de uma vela, que poderia causar um incêndio fatal, por exemplo. E quantas noites não fiquei angustiada a sua espera, pensando que talvez ela tivesse morrido, porque demorava a voltar para casa. E quantas vezes ela chegava exausta da jornada de trabalho, e às vezes embriagada. Apesar de tudo, eu sentia um alívio quando ela voltava. Sentia-me segura e protegida ao seu lado. Afinal, se algo lhe acontecesse, eu e minha irmã estaríamos sozinhas no mundo, eu pensava.
Voltando aos cuidados com Cristina. Era eu quem também lhe ajudava com as tarefas escolares. E assim foi até que ela concluísse o ensino médio. Apesar das brigas que marcam a relação de todos os irmãos, sobretudo na adolescência, sempre fomos muito unidas e cuidamos uma da outra. Ficar longe dela sempre foi motivo de sofrimento para mim. Lembro de dois momentos em que precisamos nos afastar e da angústia que senti quando isso aconteceu. Na primeira vez, eu estava com dez anos e ela com cinco; na segunda, ela estava com 20 e eu com 25 anos. A segunda separação não foi diferente. Chorei muito após deixá-la na rodoviária para que tomasse um ônibus até Recife, onde iria trabalhar com familiares nossos, o que terminou sendo algo desastroso e me trouxe um sentimento de culpa por tê-la incentivado acreditando que estaria indo em busca de uma vida melhor. Não consegui pregar o olho naquela noite. Sempre dividimos o mesmo quarto e não foi fácil saber que ela já não estaria mais comigo todas as noites. Ainda guardo comigo o edredom que ela usava quando saiu de casa, há uma década.
Depois da experiência traumática no Recife, ela voltou para casa (nessa época, morávamos com nossa mãe adotiva, a esposa do nosso pai que assumiu nossa guarda), mas devido a problemas familiares, Cristina teve de sair novamente e, num curto espaço de tempo, morou em duas casas diferentes, também de familiares. Nesse período eu sempre a visitava. Alguns anos depois, outra separação, ela foi morar em São Paulo com seu marido, com quem viveu por nove anos, até que ele fosse acometido por uma doença rara nos pulmões que lhe ceifou a vida em poucos meses.
Há dois meses, vivemos um difícil e necessário reencontro: precisei ir até São Paulo para que ela retornasse comigo a Natal, após o falecimento do esposo. Esse foi talvez um dos momentos mais difíceis de nossa existência. Não sei se consegui lhe dar o apoio necessário naquele momento. Foi muito doloroso vê-la tão fragilizada e nada poder fazer para aplacar sua dor. O sentimento de impotência parecia me dominar o tempo inteiro. E quantas vezes não choramos juntas a sua dor… Por sorte, viajei acompanhada de minha sobrinha Larissa, que apesar de muito jovem demonstrou maturidade e sabedoria naquele momento e foi um porto seguro para sua tia Cristina.
Voltamos a morar juntas após um hiato de dez anos e não posso dizer que estou completamente feliz com sua presença porque sua vinda para Natal foi decorrente da perda de uma pessoa muito amada. É muito paradoxal esse sentimento, mas não poderia ser diferente. Se por um lado estou feliz por tê-la ao meu lado, por outro, é estranho saber que estamos juntas novamente porque ela perdeu seu companheiro e teve de deixar a cidade onde foi tão feliz ao lado dele; a cidade onde reconstruiu sua vida e encontrou a verdadeira felicidade, como ela mesma costuma dizer. Isso depois de vivenciar uma infância cheia de traumas e uma adolescência bastante conturbada, devido a alguns dilemas familiares e outros. É exatamente isso que sinto todos os dias, quando paro para refletir sobre o assunto ou simplesmente quando olho para ela e vejo no seu semblante o vazio e a saudade deixados por seu amado. Eu não poderia ser egoísta a ponto de pensar somente na alegria de desfrutar de sua presença. Se pudesse escolher (ou tivesse o poder de mudar as coisas), gostaria de encontrá-la uma vez por ano, mas sabendo que ela estava feliz ao lado do seu querido esposo.
Apesar de tudo, Cris tem demonstrado ser uma pessoa muito forte, não só por estar enfrentando a dor imensurável de perder o amor de sua vida, mas por tudo que já enfrentou em sua existência, marcada por tantos dramas. É uma das pessoas mais resilientes que conheço. Sua doçura e seu senso de gratidão fazem dela uma pessoa realmente admirável. Basta dizer que foi abandonada pela mãe aos cinco anos, saiu de casa aos dezenove, em virtude de conflitos familiares, enfrentou uma depressão cujo tratamento durou quatro anos e agora, às vésperas de completar 32 anos, está lutando bravamente para superar a perda do marido. “Você não faz ideia do quanto eu tenho me esforçado para levantar da cama todos os dias”, me disse logo que retornamos de São Paulo. Sei que não é fácil, minha irmã, mas saiba que você não está sozinha nessa caminhada. Estarei sempre aqui para segurar a sua mão e ajudá-la a levantar quando preciso for.
Hoje mesmo, ela teve um momento de profunda tristeza quando passamos em frente ao mar, a caminho de um restaurante onde comemoramos o aniversário de uma amiga nossa. “Ele adoraria fazer esse passeio”, declarou em tom nostálgico, enquanto conversávamos sobre as praias do RN e lembrávamos alguns momentos vivenciados com o esposo dela em Natal. Sei “Que a saudade dói como um barco / Que aos poucos descreve um arco / E evita atracar no cais”, como diz a canção de Chico Buarque.
Vê-la feliz sempre foi algo importante para mim, desde a mais tenra infância, mas não sabia que isso seria tomado como missão, especialmente depois de tudo que aconteceu. Bem, no que depender de mim, ela terá toda paz e amor de que necessita para seguir seu caminho com leveza e tranquilidade. Estarei sempre aqui para protegê-la e abraçá-la, como tem sido desde as noites escuras de nossa infância. Espero ser o abraço que protege e a palavra que reconforta, como você foi para mim ao longo de tantos anos, mesmo quando estava distante.
6 Comments
Muito emocionante ler sua linda crônica, querida Andreia. Um texto com palavras que fazem nossos olhos lacrimejarem. Desejo vida longa com alegrias para essas duas meninas queridas.
Fico sempre emocionada com seus relatos e esse então é mais comovente, vc escreve com muita veracidade e que demonstra amor ,carinho e cuidados com sua irmã a qual conheço e vejo o qt ela é carinhosa e também carente de sua companhia, desejo toda felicidade do.mundo prá vcs duas, que nunca falte amor ,determinação e sabedoria p continuar a vida ! Deus te abençoe!
Belíssima crônica escrita com os dedos da alma nas páginas do coração. De uma sensibilidade majestosa, que beira o sublime. Parabéns por tanta sensibilidade e doçura.
Que texto comovente, minha amiga. Você escreve com alma e coração. A sua escrita sempre me encanta. Um abraço afetuoso.
Que história forte, límpida e escrita com tanta alma que dá para sentir a presença das irmãs juntas.
Parabéns Andreia, não sei se sorrio com o coração de ver tanto amor, tanta compreensão do que foi vivido, muita resiliência para perceber o passado e o que ele lhes trouxe ao presente, sendo determinado por um amor fraterno incondicional ou ainda se apenas choro, pensando nas nuances de dores que você soube suavizar tão majestosamente.
Sou uma irmã mais velha e muitas vezes me sinto como você e isso me tocou profundamente, tenho apenas um desejo pra vcs, que nunca se percam nesta passagem em que estão, basta os desencontros da vida. Vida longa e cheia de beijos, abraços, sorrisos desmedidos e muito amor e compreensão.
Beijinhos no coração e na alma!