Um olhar do sertão

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por Wilson Coelho

A narrativa de Céus e terra, obra de Franklin Carvalho, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2016, na categoria romance, passeia entre o realismo e o fantástico. Pelo realismo, a partir de um relato árido de seus acontecimentos e, o fantástico, de certa forma, pelo artifício de um personagem-fantasma-narrador, o menino de doze anos chamado Galego, defunto decapitado que é testemunha de sua própria desgraça e as dos outros de seu meio.

Franklin Carvalho

Se pudermos fazer um paralelo entre a obra de Franklin Carvalho e os Cem anos de solidão, de García Marquez, temos aqui a solidão de um morto que, apesar de presenciar todos os movimentos de sua gente depois de sua morte, ele não pode ser visto e nem ouvido. Uma espécie de membro dos Buendía que, não em Cem anos de solidão, mas nos intensos nove meses de 1974, de abril a dezembro, tempo de duração da narrativa, faz sua trajetória.

Essencialmente, no que diz respeito ao enredo, em Céus e terra, um menino pobre, filho de família muito humilde do sertão baiano é chamado a ajudar a salvar um homem crucificado, mas ele também acaba morrendo, decapitado. Depois de sua morte, ele perambula pela cidade de Araci, a sua Macondo – nome que García Marquez dá para sua cidade natal, Aracataca -, acompanhando a rotina das pessoas e, apesar de ser tão jovem e ter usufruído tão pouco de sua pequena estada no mundo dos vivos, começa a compreender os significados da vida, transitando invisível pelas tradições locais, desde o sentido laico e de certa forma ingênuo, de certa forma amoral, até o universo cristão no qual toda a comunidade em que ele viveu está inserida.

De certa forma, esse menino que não pode compreender os símbolos e tradições locais durante sua breve existência terrena é o retrato da condição do sertanejo que, conforme o autor, como pobre é exilado na terra onde nasce, antes mesmo de migrar, porque não tem acesso a ela, ou seja, não tem o sentido de pertencimento. Consequentemente, o passeio do morto revisitando as pessoas e os lugares por onde transita é uma espécie de tentativa de reassumir-se identificado no tempo e no espaço.

É através dos olhos de Galego que a história de seu povo e de sua cultura se revela ou desvela, cuja repetição de destinos, muito mais que um dèjá vu, denuncia a condição de vida desse grupo social.

Noutros termos, considerando que apesar do personagem, como morto, se satisfazer apenas na observação das pessoas de sua comunidade, também ele se insurge como uma presença, na medida em que sua alma é invocada pela própria sociedade como objeto de veneração e o transforma numa espécie de santo ao qual atribuem o poder de realizar milagres.

Apesar da advertência do autor de que o livro “foi feito para enganar a morte”, Céus e terra conta a história de três mortes, a do menino, a de um cigano e a de um lavrador. Não é por acaso a definição desses personagens: o menino, uma suposta “inocência”; a do cigano, o nômade que não tem lugar; e a do lavrador, o trabalhador explorado.

Mas o que é a morte? Os personagens passam pelo Dia de Finados que, inclusive, cai num domingo. Conforme o narrador, “finados não é mais parente da gente, não é irmão, não é conhecido, não tem nome. Finados são as pessoas que a Igreja toma para si para, fazer um feriado”. Para muitos, a morte é entendida como o contrário da vida. Não, aqui a morte só está em contraponto com o nascimento e, em certo sentido, a morte e a vida são o mesmo, assim como o nascimento e o renascimento (ressurreição) devido as condições de seus personagens.

Considerando que para as pessoas o sagrado não está fora da vida, mas faz parte do cotidiano, muito do universo da obra está latente até no nome dos personagens, considerando que seus nomes anunciam algo que está para além de suas subjetividades, ou seja, quase como entidades representando ideias. Podemos dizer que Galego é uma espécie de Jesus e seu duplo que, embora tenha sido decapitado, está presente na morte do crucificado.

No mais, a presença dos personagens José de Aritmatéia, o feiticeiro Deus Quiser, Abel, Elias, Cipriano, Tonho do Padre e tantos outros, assim como, a referência à missa do galo e sexta-feira da paixão, também acusam a presença de um sincretismo religioso, que é uma das características mais marcantes de nosso país. Mas no trato deste sincretismo, apesar de uma certa dose de deboche, Franklin Carvalho opta por tratá-lo ora de uma forma poética, ora com a artifício da ficção, para entendermos que, na prática, as pessoas se utilizam da mesma como o que elas têm à mão para suportarem a existência.

Enfim, em Céus e terra, concordando com algumas observações até então manifestadas sobre a obra, apesar da brutalidade dos acontecimentos, bem como o ambiente árido onde se realiza a trama, o autor enriquece a narrativa na medida em que a ameniza inserindo neste universo situações e elementos quase inusitados como a inocência das crianças e a solidariedade entre as mulheres. Assim como, quando deixa preponderar a contemplação silenciosa e poética que herdou de sua vivência e entendimento do ser do sertão.

Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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2 Comments

  • Elias Borges de Campos

    Bom emprestar as lentes de quem não se contenta com a luz do sol para adentrar uma obra que se mostra densa. Obrigado mestre Wilson Côelho!

  • Daniele Pinto Poltronieri

    Adorei o q pode ser Céus e Terra pela apresentação de Wilson Coêlho. Na expectativa da leitura em breve.

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