Saudações, cervejeiros acumuladores!
Quem lê apenas o título do texto pode responder ao questionamento – quando tomar cerveja? e de bate-pronto: sempre!
Não seria uma resposta errada, mas ela também não estaria plenamente adequado ao contexto e ao que gostaria de desenvolver adiante.
Recentemente, fui indagado: quantas cervejas você tem (guardadas)?
Realmente não sei a resposta exata para essa pergunta. Apenas fui capaz de estimar. Eu respondi que tinha algo entre 70 e 100 cervejas guardadas (o montante indicado como o quantitativo total representa a soma de cervejas refrigeradas e as não refrigeradas).
Suponho que sejam, portanto, no máximo 100 cervejas. A princípio, pode-se pensar: é muito! 100 cervejas é coisa demais! E quem ousaria beber tudo isso sem ser rotulado como “bebum”. Não é errado se pensar que 100 cervejas estocadas seja bastante, acredito que realmente não seja pouco, mas está longe de ser uma quantidade fenomenalmente absurda.
Tal fato se relaciona diretamente com o fator que, das 100 cervejas estipuladas, nem todas devem ser consumidas imediatamente. Isso nos leva ao seguinte entendimento: ter 100 cervejas não significa que todas elas serão consumidas na mesma hora. É com foco no entendimento que algumas delas serão consumidas mais rapidamente que outras, e, as que não serão consumidas de imediato possuem uma razão para tanto, que poderei ao final do texto concluir que as 100 cervejas guardadas não são tantas cervejas assim.
Sinteticamente, e de modo bastante singelo, a coluna de hoje é sobre a cerveja e o tempo. Ou como o tempo, que é o modo essencial de ser, afeta a cerveja. Espero que todos tenham uma boa leitura sobre o tema proposto.
As cervejas refrigeradas
“Cerveja só presta fresca”: uma falácia.
Quem disse isso generalizou um mundo muito abrangente em meras quatro palavras e em um único sofisma. Nem toda cerveja só presta fresca. Mas, claro, alguns estilos são mais bem apreciados no ápice do seu frescor.
A questão é que a assertiva anterior não é uma verdade universal, e, mais adiante, vamos desbravar o seu porquê. O correto seria enunciar que (alguns tipos de) cerveja só prestam frescas. São estilos que pedem frescor do lúpulo em sua maioria, ou que podem ser facilmente oxidados (o que acaba acarretando, também, uma enorme perda qualitativa do lúpulo).
Por suposto, nem sempre é possível comprar e degustar a cerveja no mesmo dia que ela foi comprada. Quiçá comprá-la e bebê-la no dia em que a cerveja foi produzida. Dadas as contingências normais de compra e produção, o correto é tratar dos estilos que demandam uma cerveja mais fresca acondicioná-las sob refrigeração.
A dica da refrigeração é válida, precipuamente, para as cervejas que não são pasteurizadas, dada a sua volatilidade intrínseca ao processo pelo qual elas não passam, que acaba por lhes conferir um caráter mais duradouro e as estabilizam em termos microbiológicos (leia mais detalhes aqui https://papocultura.com.br/ipa-de-supermercado).
Insofismável de se dizer que, em um mundo ideal, sem limitações de qualquer natureza ou de qualquer possibilidade, todas as cervejas deveriam ficar acondicionadas sob refrigeração. Todavia, soa impraticável aplicar a regra da refrigeração compulsória a todas as cervejas quando se tem mais que 50 ou 60 cervejas (acredito que essa seja a capacidade aproximada de uma cervejeira das grandes, e o número é variável, a depender do volume da cerveja, se é lata ou se é garrafa… e demais filigranas semelhantes).
Assim, é necessário ter que se optar por quais cervejas serão guardadas com ou sem o acondicionamento da refrigeração. Por causa disso, na seção seguinte, vamos debater quais os estilos mais propensos a serem guardados por mais tempo, inclusive fora da geladeira (ou da cervejeira ou frigobar).
Cervejas de Guarda
Aplicar o ritual vetusto e paciente da guarda não é uma das tarefas mais fáceis. Primeiramente, a guarda não deve ser algo decidido de forma única pelo estilo de cerveja em questão. Claro que o estilo ajuda a saber se a cerveja em questão é adequada ou não para ser guardada por longos períodos, e alguns indicadores do próprio estilo servem como guia para decidir se optar pela guarda. No entanto, nem sempre esses detalhes são suficientes para que a guarda atinja seu objetivo primordial: melhorar a cerveja e torná-la mais complexa.
Para decidir por guardar uma cerveja por mais tempo recomenda-se duas coisas: já conhecer a cervejaria e já ter provado a cerveja.
A primeira recomendação é um tanto quanto fácil de se verificar, ao se provar alguns rótulos de uma mesma cervejaria é possível formar um convencimento acerca do seu primor e de sua qualidade. Os dois aspectos de trabalho (primor e qualidade) da cervejaria são determinantes para saber se a guarda da cerveja será bem sucedida (ou não).
A segunda recomendação, por vezes, não é tão fácil de se efetivar. Por causa do ritmo incessante de novos lançamentos (clique aqui para saber mais https://papocultura.com.br/cerveja-artesanal-e-o-frenesi-novidade/) e também pelos valores nada convidativos geralmente praticados com as cervejas mais complexas (mais propícias a guarda) nem sempre é viável conhecer todas as cervejas antes de deixá-las repousando em sua adega. Ademais, algumas cervejas de guarda são bem limitadas e pouco acessíveis, não sendo possível se adquirir duas de uma vez só (oh Mammon! Maldito livre mercado que limita a compra de uma cerveja por CPF – vai ver ele nem é tão livre assim, não é? Limitação de itens de consumo é algo tão… bolivariano), destinando uma ao consumo imediato e a outra para a guarda.
De toda forma, existem algumas indicações de características de estilos cervejeiros que os fazem ser mais adequados a serem guardados. Assim, estilos mais robustos costumam ser adequados para serem guardados por mais tempo, como, por exemplo, Russian Imperial Stout, Barley Wine, Wheat Wine, Doppelbock, Wee Heavy, Old Ale e Strong Ale. Adicionalmente, pode-se dizer que alguns estilos belgas podem merecer a guarda, especialmente as Dubbel e Quadruppel, esporadicamente alguma Tripel também. Todavia, as belgas citadas devem ser bem conhecidas e possivelmente degustadas em antecipação para saber quais devem ser guardadas (ou não).
Alguns elementos constitutivos da cerveja podem ser norteadores para se saber adequadamente se ela é propícia a ser guardada por um período maior de tempo (ou não). Dentre os elementos que norteiam a guarda podem ser destacados: o envelhecimento em barris de madeira; o seu teor alcoólico; seu dulçor; sua acidez; e sua torrefação (que influencia a sua coloração também).
Uma cerveja que foi envelhecida em barris de madeira tende a performar melhor após um período de guarda. O período em que ela repousa após ser engarrafada pode servir para que ela “arredonde”, fazendo com que o barril (ou, melhor dizendo, as notas que o barril é capaz de conferir à cerveja) seja mais bem integrado ao conjunto final. Por vezes, o envelhecimento apresenta notas amadeiradas ou tostadas muitos prevalentes, o que faz com que a cerveja não seja tão bem finalizada. Dessa forma, um período de guarda pode contribuir para uma maior complexidade final e pode fazer com que as notas amadeiradas ou tostadas sejam amainadas, tornando-as integradas ao conjunto de uma maneira mais agradável.
O teor alcoólico talvez seja o elemento indicativo de perfil mais objetivo de todos. Uma cerveja com baixo teor alcoólico tende a simplesmente se dissipar com a guarda, perdendo, essencialmente, a maioria dos seus componentes de maior expressividade cervejeira. O teor alcoólico é capaz de fornecer um bom horizonte de envelhecimento, pois as cervejas que o possuem em uma quantidade mais elevada são capazes de resistir à ação do tempo, tornando-o menos incisivo no aroma e no sabor, uma vez que o álcool tende a evaporar, mesmo sob as condições de envase ou arrolhamento.
O dulçor não necessariamente será determinante para que uma cerveja seja guardada ou não, mas, as que possuem um dulçor inicialmente mais expressivo ou mais forte podem se beneficiar com um período de guarda. Com o passar do tempo, o dulçor tende a ser integrado e não se tornar mais o protagonista no conjunto cervejeiro, tendo uma expressão menos agressiva após a guarda.
A acidez também é um componente gustativo que segue as mesmas premissas do dulçor. Não é essencial para determinar se a cerveja merece ou não a guarda, mas, com o passar do tempo, tende a se tornar menos prevalente e mais agradável no resultado final da cerveja após seu período de repouso.
A torrefação (ou a torra dos maltes utilizados na cerveja) é um outro bom indicativo do potencial de guarda. Sua propensão ao repouso diz respeito ao menor potencial oxidativo dos maltes torrados, sofrendo, dessa maneira, uma degradação pela oxidação menos severa que as cervejas mais claras. Quanto mais escura a cerveja, menos oxidação ela tende a sofrer pelo contato (direto ou indireto) com a luz. Tal elemento também é influenciado pelo invólucro, ou seja, se a cerveja foi engarrafada ou enlatada.
Todavia, há de se fazer a recomendação que apenas cervejas engarrafadas são mais adequadas à guarda, já que a interação com os elementos ambientais externos é bem menor no caso das latas.
A guarda refrigerada e guarda “natural”
Toda guarda depende das condições ambientais as quais ela é submetida. Trocando em miúdos, a temperatura do local em que as cervejas são armazenadas pode contribuir positiva ou negativamente para a guarda. Quando se tem um clima temperado (um clima conhecido por nós brasileiros como “europeu”), a temperatura de guarda é a chamada temperatura de adega, algo que pode transitar entre os 14 e os 18 graus Celsius. No entanto, no clima polar que somos capazes de enfrentar no Nordeste brasileiro, nenhuma adega, de modo natural e não-controlado, atinge a variação de temperatura ideal. É necessário que se faça um controle de temperatura para que se tenha os resultados esperados.
Contudo, é possível se optar por um envelhecimento (ou guarda) em temperatura ambiente. Essa escolha pode se dar por mera opção (para que se force um envelhecimento e uma oxidação mais intensa) ou por necessidade (nem todo mundo possui uma geladeira ou um ambiente de refrigeração que comporta 100 garrafas ou mais, como já dito anteriormente).
Escolher aplicar a guarda no modo refrigerado ou no modo natural vai influenciar no resultado final da cerveja. Uma cerveja guardada em temperatura ambiente é muito mais propícia à proliferação de micro-organismos, caso ela não seja pasteurizada, obviamente. Assim, a cerveja pode acabar desenvolvendo aromas e sabores mais rústicos do que aqueles previamente existentes. Mais uma vez, ressaltemos, essa pode ser uma escolha de quem está promovendo a sua guarda, pois isso pode agregar complexidade ao conjunto cervejeiro.
Mantendo a cerveja refrigerada durante a guarda, preserva-se a maior parte de suas características, fazendo com que a guarda seja efetuada de um modo mais controlado, por assim dizer. Tal modalidade é mais adequada às cervejas que não são pasteurizadas e também para alguns estilos em específico, como, por exemplo, as IPA’s Barrel Aged, ou seja, IPA’s (na maioria, Double IPA’s) que foram envelhecidas em madeira, para que se possa preservar algo da sua lupulagem inicial.
A presença de alguns adjuntos pode tornar a missão do envelhecimento quase impossível, baunilha, lactose e café são elementos que não tendem a resultar bem no longo prazo. Ao invés de melhorar, esses adjuntos tendem a sumir, não agregar, ou simplesmente envelhecerem mal.
Assim, cabe o registro: nem sempre uma guarda é benéfica à cerveja. É possível que uma cerveja que possuía um bom potencial de guarda não apresente as melhores condições após ser submetida a esse escrutínio. A cerveja pode ficar flat, oxidada (negativamente), avinagrada, ou até mesmo totalmente inviável por fatores diversos.
A guarda não é ciência exata, aliás, ela é uma arte, fina, complexa e sem arreios.
Saideira
Derradeiramente, podemos perceber como o momento do consumo das cervejas é algo complexo, pois envolve, necessariamente, a escolha pela sua guarda ou pelo seu consumo imediato. Alguns estilos são mais propensos a serem bebidos de modo mais imediato, ao passo que outros são capazes de se beneficiar de longos períodos de guarda.
Perdoem-me se houve alguma divagação (desnecessária) sobre os aspectos filosóficos de se aplicar o tempo (e sua fugacidade) sobre a cerveja (Ser é Tempo? Perguntaria Heidegger. Sim, é – ele mesmo responderia). Espero que no final das contas tudo seja útil e não apenas efêmero (mais uma vez temos o tempo presente…).
Existem os indicadores objetivos para a guarda, todavia, nem sempre, eles correspondem e entregam um bom resultado! É necessário um cuidado maior e uma proximidade analítica maior que os meros resultados objetivos de um indicador que sirva de norte (envelhecimento, ABV, coloração, estilo ou qualquer outro).
O artigo escrito não é definitivo, serve apenas como um indicativo de estilos ou como uma ressalva de guarda, meu dislaimer tende a ajudar a quem favorita guias definitivos.
Advirto-lhes, não é fácil decidir sobre o que e por quanto tempo guardar uma cerveja!
Música para degustação
A recomendação musical de hoje é um grande trocadilho para todos os cervejeiros que são capazes de esperar longos períodos de guarda: a canção Waiting for a Girl Like You da banda de soft rock Foreigner (que embalou muitos casais apaixonados em sucessos noveleiros da Globo).
O seu refrão diz: “I’ve been waiting for a girl like you to come into my life”. Aplique a guarda e troque girl por beer e voilà! Um brinde aos que bebem logo e aos que guardam!
Toda hora é hora, todo dia é dia!
Saúde!
FOTO DE CAPA: postada em http://etilicos.com/