Saudações, cervejeiros apimentados!
A harmonia cervejeira (ou a desarmonia, em alguns casos, saliente-se) pode advir de elementos externos ou internos à própria cerveja.
No caso do tema de hoje, vamos falar de algo inusitado, a adição de pimentas às cervejas, a qual serve como uma forma de harmonização interna cervejeira, já que o adjunto é colocado diretamente na etapa de produção.
A interação entre pimenta com outros alimentos ou bebidas não é nova, mesmo quando a pimenta não é colocada como um mero “tempero”. Um dos exemplos clássicos que pode ser dado é o chocolate com pimenta, que virou até nome de novela da Globo.
No texto de hoje, vamos focar especificamente na possibilidade de combinar cervejas, sejam elas mais claras ou mais escuras, com pimentas, em suas mais diversas formas ou intensidades.
E aí, você encara uma cerveja, literalmente, apimentada?
Vamos para um Papo Cultura cervejeiramente ardido hoje!
Pimentas, o ardor e a cerveja
Pimentas são como o Brasil na década de 1970, quando o Médici aterrorizava a população no auge de seu totalitarismo: “ame-as ou deixe-as”. Digamos que as pimentas eu consigo amar um pouco, pelo menos…
A questão é que as nuances de sabor das pimentas, de fato, não se adequam a todos os paladares possíveis. Algumas pessoas são mais sensíveis ao ardor e conseguem captar menos outras notas de aroma e sabor que as pimentas têm a oferecer.
De início, cabe denotar que o ardor é algo que varia de tipo a tipo de pimenta. Algumas ardem mais e outras menos. Ainda que no texto tratemos as pimentas de modo bem amplo e um tanto quanto generalizado.
O ardor é causado por uma substância chamada capsaicina. Ela tem um maior teor de concentração na parte interna das pimentas, numa glândula especial no caule, de coloração branca, próximo onde as sementes ficam armazenadas. Existe até um método para medir a potência do ardor, chama-se Escala de Scoville (ou Teste Organoléptico de Scoville).
A pimenta ao ser adicionada à cerveja poderá ter seu ardor consideravelmente diminuído. A diminuição no seu potencial de ardor dependerá, basicamente, de elementos que estejam contidos na cerveja e que sirvam como elemento de contenção, como, por exemplo, derivados de leite.
Por causa desse fato, cervejas que utilizem, porventura, lactose em sua composição, como adjunto, tendem a amainar o impacto do ardor das cervejas em seu resultado final.
Stout com Pimenta
Cabe destacar, na minha humilde opinião, que a adição de pimentas acaba combinando mais com alguns estilos que com outros. Particularmente, eu acredito que os estilos mais escuros, como Porter e Stout, são os mais propícios para destacarem algum brilho ao adjunto ardido.
Nesse contexto, coloco em evidência as Stout’s com adição de pimenta, como um belo e recomendado exemplo de cervejas com adição de pimenta que merecem ser provadas e conhecidas.
Julgo que as Stout’s (e também as Porter’s, por causa da particularidade descrita a seguir) são um bom pareamento com a adição de pimentas em virtude da combinação, já clássica, do chocolate com pimenta. As Porter’s, por vezes, conseguem ter um perfil achocolatado ainda mais destacado que as Stout’s, saliente-se.
A combinação de chocolate com pimenta destaca-se como uma boa pedida pelo fato de a pimenta ser capaz de aprofundar o sabor adocicado do chocolate, deixando-o ainda mais destacado.
Nas Stout’s que costumam ter uma torra mais acentuada e uma percepção de chocolate com alguma intensidade, a adição de pimentas vem a contribuir com um dulçor (e um ardor, também) mais pronunciados. Algo que promove a inclusão de mais camadas de aroma e de sabor na cerveja.
IPA com Pimenta
Quem conhece e já provou alguma cerveja do estilo IPA alguma vez na vida, certamente, não o rememora como algo apimentado. As primeiras impressões e descrições sobre o estilo tendem a remeter ao seu caráter lupulado, em primeiro plano, sejam suas notas cítricas, resinosas, herbáceas, florais, dentre outras.
Desse modo, parece pouco usual, e bastante inventivo (ou criativo) que se pense em adicionar um perfil mais ardido das pimentas a um estilo notadamente refrescante das IPA’s.
Apesar da aparente contradição denotada, é bastante comum ver algumas experimentações cervejeiras com IPA’s e pimentas. Aliás, não apenas com pimentas mais aromáticas adicionadas à receita, e, sim, com pimentas de alto ardor na escala de Scoville!
É o caso da icônica American IPA, Sculpin Habanero, da cervejaria americana Ballast Point. Há alguns bons anos, aproximadamente 5 anos ou um pouco mais, a versão regular da IPA icônica de San Diego era facilmente encontrada no Brasil, muito embora a cerveja em apreço, com adição da pimenta Habenero, uma das mais potentes, nunca foi oficialmente importada.
No cenário nacional, podemos citar o exemplo experimentalista da cervejaria Suricato, que criou a base da IPA, No Ecziste, e depois lançou versões também com a Habanero, além da incrivelmente potente pimenta Carolina Reaper, e também com a mais aromática (menos ardida) pimenta verde Jalapeño. Com esses experimentos, a cervejaria denotou a versatilidade da base com diversas pimentas de perfis variados.
Cervejas que já possuem um “apimentado” natural
Ainda que uns estilos sejam mais propícios à adição de pimentas, é salutar que alguns estilos já possuem um “apimentado” natural, por assim dizer. Claro que a simples combinação de água, lúpulo, malte e levedura não é capaz de produzir capsaicina. Quando faço menção à cervejas naturalmente apimentadas me refiro a compostos fenólicos já presentes no resultado final.
Como já mencionado, alguns estilos, notadamente, a maioria belga, tende a aglutinar compostos fenólicos em maiores proporções, o que gera uma sensação condimentada, e, até certo ponto, apimentada nas cervejas.
O estilo Saison, particularmente, é um dos que possuem compostos apimentados mais bem denotados. Claro que não se consegue distinguir exatamente a qual pimenta a cerveja do estilo mencionado é capaz de remeter em seu aroma ou em seu sabor, já que não há adição direta de nenhum tipo de pimenta em sua receita.
No entanto, nas cervejas do estilo Saison, não é raro encontrar notas sensoriais próximas de pimenta-branca, pimenta-do-reino e até mesmo pimenta de cheiro (também conhecida por Adjuma) em alguns casos. O trabalho de algumas leveduras de cepa belga consegue produzir tais compostos de maneira mais perceptível, combinando perfeitamente com o estilo em questão.
Outro estilo belga que consegue casar muito bem com perfis apimentados (adicionados ou resultantes da fermentação) é a Witbier.
O estilo supracitado já leva normalmente em sua composição a adição de semente de coentro, capaz de condimentar a cerveja de modo sutilmente apimentado. Contexto produtivo ainda mais potencializado com adição de pimentas mais aromáticas, como, por exemplo, a pimenta-da-Jamaica (ou Dioica).
Saideira
As combinações existentes entre pimentas e cervejas são quase que infinitas. Seria praticamente impossível descrever todas elas e com o respectivo estilo nos quais cabem as devidas adições. A versatilidade do condimento ardido é algo que aflora ainda mais a criatividade do cervejeiro.
Em virtude de tais considerações teci apenas alguns apontamentos sobre os estilos mais comuns de se ter a adição de pimentas ou aqueles nos quais ela já é “naturalmente” cabível, por assim dizer.
Claro que sempre coloca a ressalva de que a pimenta, como um condimento, não é para qualquer pessoa. Bem como também, as cervejas que levam o adjunto ardido em tela acabam não sendo, igualmente, para qualquer pessoa.
É necessário ter o mínimo de familiaridade com o perfil ardido e aromático das pimentas para saber como elas casam ou harmonizam com os mais diversos estilos cervejeiros.
E você? Arrisca beber uma cerveja apimentada para experimentar ou variar?
Recomendação Musical
Qualquer música mais quente, mais apimentada e mais dançante seria a recomendação ideal para se beber uma cerveja que tenha pimenta em sua receita.
Acredito que seja possível ir mais adiante, é possível se recorrer a um artista que tenha pimenta no seu nome e que agregue todas as características anteriormente citadas também!
Por causa de todas as particularidades mencionadas, a recomendação musical de hoje necessariamente tinha que ser uma música da banda californiana Red Hot Chili Peppers e sua música mais icônica: Californication.
Um sucesso mundial, apimentado ainda mais com seu clipe em formato de vídeo-game.
Muita pimenta para todos e saúde!
IMAGEM: Postada no blog Empório do Lúpulo