Cerveja com gosto de cerveja

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Saudações, cervejeiros!

Acredito que o texto de hoje, só pelo seu título, já possa soar um tanto quanto polêmico. Mas, que seja…

O pior de tudo é que não estou tentando soar antiquado ou retrógrado, contudo, surgem tantas “coisas estranhas” na cultura cervejeira denominada de “high end” (ou, “cultura cervejeira de ponta”) que fico um tanto abismado com “os limites do que é cerveja”, ou sobre aquilo que podemos chamar de cerveja.

O título, nessa toada, sem dúvidas, soa chamativo, e um tanto quanto especulativo sobre o que podemos denominar cerveja, e, ainda mais, o que seria a tal “cerveja com gosto de cerveja”.

Para deixar claro logo na introdução, quando penso em cerveja com gosto de cerveja, seria uma cerveja que seus aromas e sabores primários advenham do malte e do lúpulo. Claro que em um contexto mais amplo, não se pode desdenhar ou simplesmente anular os mais diversos adjuntos (chocolate, café, coco, dentre outros) ou o envelhecimento em barris (até porque isso já é algo solidificado em toda a cultura etílica).

Todavia, cerveja com gosto de cerveja não é apenas a cerveja amarelo palha a ser bebida em doses cavalares sob o sol tropical, tampouco é qualquer coisa que imite outra bebida completamente diferente. Acredito que cerveja com gosto de cerveja seja o intermediário desses dois mundos distintos e bastante díspares.

A pós-modernidade do pós-adjunto

É difícil assimilar o conceito de Pós-Modernidade em um país jovem como o Brasil, com pouco mais de 500 anos. Se mal tivemos uma modernidade capenga e uma contemporaneidade colonial, como que podemos vislumbrar o pós daquilo que mal conhecemos efetivamente?

Transmutando esse conhecimento cultural para as cervejas, penso de forma bastante parecida. Ainda estamos na contemporaneidade do uso dos adjuntos, tomando por base que aquilo que tivemos como modernidade era o pilar básico da produção cervejeira: malte, lúpulo, água e levedura.

A inserção de adjuntos, em diferentes momentos da produção cervejeira ainda é algo que tem muito espaço para se desenvolver. Há muito o que ser explorado nesse filão.

Todavia, quando se começa a se inserir adjuntos em um momento posterior à finalização do processo produtivo, seja chantilly, glacê, espuma de café e/ou cappuccino ou sorvete, estamos queimando uma etapa muito básica do que se estabelece como sendo cerveja.

Qual seria o próximo passo? Colocar pó de pirlimpimpim para adornar a cerveja?

É nessa parte que se divide a cerveja com gosto de cerveja e esse algo que ainda não sei denominar. Na verdade, pela foto, eu não sei se é uma cerveja ou um desfile de carnaval com pirotecnia agressiva a diabéticos.

A era do pós-adjunto pode ter chegado para ficar. Ainda não sei, aliás, acredito que ninguém sabe se é uma mera experimentação ao vivo, ou se algum dia alguém vai simplesmente meter um picolé na própria Stout… cenas dos pós-créditos, eu acredito.

Cerveja que tenta parecer outra coisa… que não seja cerveja

Superando-se a questão da pirotecnia do serviço cervejeiro, com seus badulaques e confetes, ainda há um outro porém que ronda a evolução dos estilos cervejeiros na atualidade.

Não que eu seja contra a evolução das cervejas artesanais como um todo, e de alguns estilos mais promissores em específico. Tampouco, pretendo definir ou estatuir o que é cerveja ou o que não é cerveja, traçando regras específicas e rígidas sobre o tema. Não se trata de ser um “caga-regra”, ou algo do gênero, é apenas uma constatação do afastamento de alguns estilos mais novos daquilo que usualmente temos como sendo cerveja.

Claro que todas as observações feitas aqui são condizentes com o que se tem como parâmetro geral das cervejas artesanais e de sua cultura. Pois, se fôssemos buscar definições mais comuns ou populares do que é cerveja, não sairíamos do que se costuma conhecer por cervejas de massa, vendidas em supermercados e bebidas ultra geladas.

O ponto é que algumas inovações cervejeiras, como, por exemplo, as Smoothies Sours, subvertem noções básicas de defeitos, como o trüb ocasionado pela inserção de cerveja in natura na sua fase de maturação, como sendo algo desejável.

É certo que a turbidez pode ser mais elevada em alguns estilos, como na Hazy IPA ou nas Weizen, contudo, em nenhum dos dois exemplos dados trüb pode ser tido como algo desejável, sequer, aceitável. Smoothies parecem ter a licença para burlar tal definição porque não tencionam ser cerveja (ou parecer cerveja), querem emular em quem as degusta uma outra sensação. Uma sensação de não estar bebendo uma cerveja, e sim, uma vitamina.

Algo parecido pode até ocorrer com alguns drinks, mais encorpados, mais doces e mais fáceis de serem bebidos. Contudo, uma cerveja que não se propõe a ser percebida como cerveja, possivelmente para atingir um público também não-cervejeiro, soa como desencaixado da própria cultura cervejeira.

Apontamentos similares podem ser feitos às cidras, aos hidromeles e também aos hard Seltzers, porém, para esses exemplos, fica mais fácil arquitetar uma defesa mais sólida. Isso porque eles sequer levam malte e/ou lúpulo (obrigatoriamente) em suas composições, diferentemente das Smoothies… que tentam a todo custo não serem o que são. Os líquidos citados são apenas anexos à cultura cervejeira e não o seu núcleo propriamente dito.

Afinal, o que é cerveja?

Talvez soe presunçoso eu dar uma resposta muito direta sobre o que é cerveja, pior ainda, posso soar ainda mais pedante sendo implacável ao definir o que não é cerveja (parece ser bem mais grave a negativa). O fato é que, muitas coisas, que foram feitas para ser cervejas, apesar de não quererem aparentar ser, por inserções pontuais produtivas, ou adições posteriores ao processo produtivo, acabam inseridas na cultura cervejeira.

Por causa disso, não vou derradeiramente estabelecer o que é ou o que não é cerveja, ainda que me reserve no pleno direito constitucional de não gostar disso ou daquilo (algo que certamente estará implícito em alguma passagem do texto em desenvolvimento). O direito de não gostar todos possuem, o direito que talvez não seja assistido é o da definição peremptória. E isso não restará acrisolado no meu discurso.

Desse modo, a definição do que é cerveja caberá a cada leitor e a cada degustador. E, ainda assim, mesmo não gostando da pirotecnia ou das inovações cervejeiras, queira classificar o líquido analisado como cerveja, que seja, mesmo que ele nem queira assumir tal demanda por si próprio.

Chegamos em um ponto em que a definição é menos relevante que o fato. O fato é que cervejas estão sendo vendidas e difundidas dessas maneiras, e tem quem goste. Tendo quem goste, sempre haverá quem produza, para o bem ou para o mal. É assim que a cultura cervejeira funciona. Esse também é o motivo pelo qual tantos outros estilos já pereceram ao longo do transcurso histórico, ou, ao menos, estão prestes a sê-lo.

Saideira

Cerveja com gosto de cerveja talvez seja aquilo que todos nós buscamos de uma forma encontrar ao abrir uma garrafa ou uma latinha. Todavia, a experiência de encontrar aquilo que buscamos nem sempre é fiel à expectativa.

Inobstante, com ares de pós-modernidade, há quem intente abrir uma cerveja e ter a sensação de estar bebendo outra coisa totalmente diversa, seja ela alcoólica ou não. Por mais que soe díspar em um primeiro momento, acredito que essa jogada tenha como intuito atrair pessoas que não gostam de cerveja para beber cerveja (que não parece exatamente uma cerveja).

Qualquer que seja o intento, beber uma cerveja que não se propõe, ao menos logo de cara, parecer uma cerveja, tende a ser uma escolha, no mínimo, inusitada. Decerto, deve haver quem goste de fazer a intersecção entre o que é (cerveja) e o que não quer ser (cerveja), mas, de fato, é.

Por via das dúvidas, eu ainda prefiro que minha cerveja pareça ser uma cerveja

Recomendação Musical

Como eu gosto de cerveja com gosto de cerveja, eu também gosto de músicas muito peculiares. Portanto, a recomendação de hoje é nada mais nada menos do que uma das minhas 3 músicas preferidas de todos os tempos!

Trata-se da canção chamada Expandera, da banda de Black Metal/Depressive Rock sueca Lifelover. E, sim, o nome da banda é uma ironia.

Saúde!

 


CRÉDITO DA FOTO: Postada no blog Cervejar.com

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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