PREÁ CARNAÚBA DOS DANTAS: Historiador critica “apagamento” de grupos sociais da história do Seridó

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Nesta entrevista à Preá, o professor, historiador e doutor em História pela UFPE, Helder Macedo, repassa sua trajetória, presta homenagem aos professores e historiadores que o influenciaram e afirma que o seu trabalho é uma tentativa de compreensão de processos que culminaram com o “apagamento” de determinados grupos sociais da história do Seridó. Considerado um dos mais importantes historiadores potiguares em atividade, é autor de livros como “Ritmos, sons, gostos e tons do patrimônio imaterial em Carnaúba dos Dantas” (2005), “Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte: história e mestiçagens” (2011), “Sertões do Seridó: estudos de história colonial” (2012) e “Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças nos sertões do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX)”, de 2020, entre outras, além de dezenas de artigos, ensaios e participações em coletâneas.

Do que é feita a sua história?

Minha história tem relação com os lugares onde minhas raízes estão fincadas. Sou de Carnaúba dos Dantas – embora tenha nascido em Currais Novos –, o mais velho de 5 irmãos, filhos de Arnor de Raquel de Chico Macedo e de Helenice de Auriscinha de Gambão. Minhas vivências, na infância, foram, em sua maioria, urbanas, mas, feriados, dias festivos e férias, em grande parte, foram passados no sítio Ermo e adjacências, em casa de parentes pelo lado paterno. O contato com o mundo do campo me fez nutrir uma afetividade sem igual pela caatinga, que pulsa ainda hoje (quando cursava a 4ª série do antigo “Primário”, tinha sonho em ser biólogo). Ter uma mãe como professora influenciou diretamente no meu gosto por leitura e escrita e, além disso, pelo desejo de ser educador – uma herança que carrego até hoje. Após cursar o que hoje chamamos de Educação Básica, em Carnaúba dos Dantas, prestei vestibular para o Curso de História em 1996. Aprovado, iniciei meus estudos em 1997 no Campus de Caicó, do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde concluí, em 2002, o curso de Licenciatura e Bacharelado em História. De 2003 a 2013 viajei mundo afora, estudando (especialização em Patrimônio e Turismo – UFRN – Caicó, 2003-2005; mestrado em História – UFRN – Natal, 2005-2007; doutorado em História – UFPE, 2009-2013) e trabalhando (como professor do Magistério Superior em faculdades e universidades privadas, em Natal, Currais Novos, João Câmara, Ceará-Mirim e assessor de projetos na Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte – Fapern). Voltei à UFRN, como professor estatutário, por meio de concurso público para a área de Pesquisa Histórica, em 2013, lotado no Departamento de História do CERES-UFRN. Mudei-me de mala e cuia para Caicó, realizando um sonho de moradia nesse lugar quente e aconchegante que é a capital do Seridó. Além da graduação, atuo na pós stricto sensu nos Programas de Pós-graduação em História dos Sertões (Caicó) e História e Espaços (Natal).

Suas pesquisas partem de qual início/interesse?

Comecei a fazer pesquisas em 1991, motivado por escutar, entre familiares pelo lado materno, que dois ancestrais haviam sido historiadores em seu tempo: Mamede Azevêdo (1875-1956), meu trisavô, e seu irmão José de Azevêdo (1890-1929), meu tio-trisavô. O interesse era, nessa época, construir a minha árvore genealógica e “descobrir” quem eram meus antepassados. Por essa altura, já era conhecido como “rato de biblioteca” (uma referência à minha presença constante na Biblioteca Pública Donatilla Dantas junto com amigos como Sidney, Cristiano, Lígia, Sheyla, Plínio e, dentre outros, Edneide) e me dediquei a ler os poucos livros escritos, até então sobre a história de Carnaúba dos Dantas: O Coronel de Milícias Caetano Dantas Correia (1977), de dom José Adelino Dantas; Cinqüentenário do Monte do Galo em Carnaúba dos Dantas, de Pedro Arbués Dantas (1978); e Carnaúba dos Dantas – Terra da Música (1989), de Donatilla Dantas. Fiz entrevistas com idosos da minha família e de outras, na procura por referências a meus familiares mais recuados e combinei o uso dessas fontes orais com idas aos arquivos dos Cartórios Judiciários de Carnaúba dos Dantas e de Acari, bem como, das Paróquias de Acari e Caicó, onde fiz consulta e transcrição, com lápis e papel, de informações presentes em registros de batizado, casamento e óbito, além de livros de registro civil, inventários post-mortem, processos criminais e ações cíveis. Pouco a pouco meu interesse se deslocou, também, para a compreensão do processo histórico que originou o atual território de Carnaúba dos Dantas. Pelos idos de 1993 em diante, passei a manter correspondência (e, em alguns casos, convivência) com historiadores e intelectuais como os saudosos Jayme Santa Rosa, Pedro Arbués Dantas, Sinval Costa e Olavo de Medeiros Filho, além de Antonio Luiz de Medeiros, que me forneceram informações preciosas, dicas e caminhos para um neófito na pesquisa em arquivos. A partir de 1999, já na graduação em História (UFRN), atuei como bolsista de iniciação científica sob a tutela do falecido professor Muirakytan Macêdo, em três projetos de pesquisa distintos. O contato com as fontes históricas ligadas ao mundo da Justiça Pública e da Igreja Católica, pensando, agora, o Seridó como uma espacialidade mais ampla, levou-me a construir uma linha de investigação que começou com o estudo das populações indígenas e prosseguiu com o das populações mestiças, perpassando a minha trajetória na graduação e pós, com desdobramentos até os dias de hoje.

Qual o papel de Muirakytan nesse processo?

Muirakytan teve um papel imprescindível ao me oportunizar a vivência enquanto aprendiz do ofício do historiador na academia. No mestrado e doutorado contei com a tutela e apoio das professoras Fátima Lopes e Tanya Brandão, respectivamente, a quem igualmente sou muito grato. De maneira geral, então, o meu foco de pesquisa orbitou de um interesse em genealogia e história local para uma tentativa de compreensão de processos que culminaram com o “apagamento” de determinados grupos sociais das páginas da história do Seridó, como os indígenas, os pretos e os mestiços (pardos, mulatos, caboclos, mamelucos, cabras, curibocas). Ainda hoje, as investigações que conduzo têm como foco o desejo de permitir que tais tipos de pessoas tenham, também, seus lugares, nos livros de História, como protagonistas da história do Seridó.

E de quais referências filosóficas, históricas ou de outra corrente metodológica você usa para substanciar suas pesquisas e escritos?

Como historiador, admito que minhas investigações possuem diversas influências teóricas, lidas e cultivadas desde o contato com bibliografias durante a graduação. Destaco, em particular, a minha identificação com ideias disseminadas pelo Historicismo alemão e pelo movimento francês ligado à revista Annales, com seus vários desdobramentos ao longo do século XX. Quando penso nos fenômenos humanos que elejo para investigar, costumo alternar entre duas lentes de observação: uma, da História Social, para captar as relações entre pessoas, grupos e instituições, suas vivências no espaço e protagonismos transformando-o; outra, a da História Cultural, para compreender como essas mesmas pessoas elaboraram diferentes representações sobre si, sobre os outros e sobre o espaço em que habitaram. Em termos de abordagens metodológicas, uso um leque variado, a depender do tipo de fonte histórica que está sendo interpretada, indo desde a História Quantitativa, História Serial, Micro-História, conjugadas, quase sempre, com os métodos indiciário e onomástico.

Diante do tamanho e da riqueza da história interiorana potiguar, há poucos historiadores e pesquisas a respeito?

Helder MacedoNão… Há uma grande quantidade de historiadores que se debruçam sobre a história do interior do Rio Grande do Norte, oriundos de instituições públicas, como a UFRN e a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), além das universidades privadas. Em se tratando do Seridó, que é a minha aldeia, há uma vasta produção bibliográfica sobre os temas de História, Cultura e Genealogia, feita por eruditos e por acadêmicos cujo enfoque é a região ou, em particular, algum dos seus municípios. As pesquisas feitas em nível de pós-graduação por professores que ministraram aulas nos cursos de História e Geografia do CERES – Campus de Caicó, indubitavelmente, foram fonte de inspiração para uma gama de estudos posteriores. Estou me referindo, em particular, aos estudos feitos a partir dos anos de 1990 por Muirakytan Kennedy de Macêdo (A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense; Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões da pecuária – Seridó, século XVIII), Eugênia Maria Dantas (Retalhos da Cidade: revisitando Caicó; Fotografia e complexidade: a educação pelo olhar), Ione Rodrigues Diniz Morais (Desvendando a cidade: Caicó em sua dinâmica espacial; Seridó norte-rio-grandense: uma geografia da resistência), Douglas Araújo (A Morte do Sertão Antigo no Seridó: o desmoronamento das fazendas agropecuaristas em Caicó e Florânia – 1970-1990), Cláudia Cristina do Lago Borges (Cativos do sertão: um estudo da escravidão no Seridó/RN) e Francisco Fransualdo de Azevêdo (Entre a cultura e a política: uma Geografia dos currais no sertão do Seridó Potiguar). Com a criação da pós-graduação em História na UFRN (Natal, 2005; Caicó, 2018), o número de trabalhos em nível de mestrado sobre o Seridó aumentou consideravelmente. Uma consulta rápida ao Repositório Institucional da UFRN nos dá nomes de historiadores que se debruçaram, em suas investigações de mestrado, ora sobre o sertão do Seridó (Isac Medeiros, Maiara Araújo, Samara Silva, Ilka Pimenta, Olívia Neta, Anderson Dantas e eu), ora sobre municípios em específico (Luciano Aciolli Santos, Luana Barros, Mary Campelo, Juciene Andrade, Ariane Pereira, Rosenilson Santos, Diogo Gois, Cláudia Medeiros, Michele Lopes e Ranielle Macedo). Essas listas, claro, simbolizam uma radiografia rápida da produção historiográfica e, por isso, estão incompletas. Estão excluídas, aqui – não por querer, mas, por espaço – as centenas de monografias de graduação feitas sobre o Seridó e dissertações e teses produzidas em outras instituições de ensino superior. Creio que a produção bibliográfica sobre o Seridó é, desse modo, tão vasta quanto aquela que existe sobre Mossoró e sobre Natal.

Você exerce a profissão de historiador acadêmico há 19 anos. O que de fato mudou no ofício nesse tempo, do ponto de vista do cotidiano e da organização da pesquisa?

Muito mudou nesse tempo. Fiz minha graduação em História numa época em que, no Campus de Caicó, da UFRN, havia apenas um computador com internet para acesso de professores e alunos (bolsistas, sobretudo). Marcava-se, na Secretaria do Centro, um horário de 60 minutos, semanal, para acesso. A partir de meados dos anos 2000, criou-se um laboratório com alguns computadores, com acesso à internet, mas, também, com reserva prévia de horário para o acesso. Estou usando esse marcador em específico, o da tecnologia, para demonstrar que o cotidiano de um historiador em formação, nessa época, era bem diferente: as leituras eram feitas diretamente nos livros ou revistas presentes na biblioteca setorial (consultados por meio de um sistema de fichas em arquivos de aço) ou em cópias xerográficas feitas no campus; a coleta de fontes históricas nos acervos era feita de forma manual, com papel e lápis; a produção de trabalhos acadêmicos era feita, muitas vezes, à mão e, depois, entregue para outra pessoa digitar; as inscrições para congressos eram feitas via correios, com envio de comprovante de depósito, cópia do resumo impresso e armazenado em disquete de 3 ½”. Com o passar dos anos, as rotinas do ser historiador mudaram, acompanhando as transformações na tecnologia, com a popularização dos computadores (e, também, dos notebooks e smartphones) e a disseminação da internet. Basta lembrar, por exemplo, que uma grande quantidade de instituições arquivísticas digitalizou os documentos que custodiam, os quais foram disponibilizados na internet, para consulta pública. Hoje, dessa forma, um historiador que esteja interessado em buscar sua genealogia pode recorrer aos registros paroquiais do Seridó (e de diversas partes do mundo) que estão armazenados no site do Family Search (http://www.familysearch.org). Caso deseje fazer uma busca por notícias de jornal, em periódicos brasileiros, poderá ter acesso às mesmas por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/). Esses são dois exemplos que mostram o quanto fazer mapeamento e coleta de fontes históricas, hoje, é uma tarefa mais acessível. Na contemporaneidade, também, historiadores dedicam-se aos mais diversos nichos, atuando ora como professores, em diversos níveis e modalidades do ensino, ora como pesquisadores, promovendo investigações próprias ou como consultores para órgãos do poder público e da sociedade civil organizada. Alguns lançaram-se na rede e são conhecidos por suas aulas no Youtube ou por seus debates travados em podcasts armazenados em diferentes plataformas de streaming, atraindo públicos mais jovens, sobretudo. Outros, ainda, atuam como consultores em museus, arquivos, bibliotecas e em organização de exposições, em assessoramento de projetos de Educação Patrimonial e mesmo na divulgação científica das pesquisas realizadas pela comunidade historiadora. Essas e outras competências foram sendo experienciadas e apreendidas por intelectuais ao longo dos últimos anos e encontram respaldo na legislação que regulamenta a profissão do historiador, a Lei Federal nº 14.038, de 17 de agosto de 2020 – uma vitória de toda a comunidade, após anos de tramitação no Congresso Nacional.

Hoje, se a pessoa digita na web “Caetano Dantas Carnaúba dos Dantas”, aparecem informações da fundação da cidade. Até que ponto a revolução digital é benéfica e maléfica nos registros da história?

Como digo comumente a meus alunos, a internet é uma faca de dois gumes. É necessário utilizar a rede com critérios e isso envolve, sobretudo, a busca por informações acerca da história local das municipalidades. No caso de Carnaúba dos Dantas, muito do que se escreve e é postado em sites ou em perfis nas redes sociais reproduz a versão “clássica” da história, em que é atribuída a “fundação” a Caetano Dantas Corrêa (1710-1797), um dos patriarcas da família Dantas nos sertões do Norte. “Clássica”, aqui, refere-se à primeira abordagem construída por historiadores eruditos da localidade, que viam em Caetano Dantas o início da história, desconsiderando assim, a presença indígena e mesmo a de outros colonizadores que estiveram pelas terras que hoje fazem parte do território carnaubense antes dos anos de 1750. Esse pensamento ficou imortalizado no discurso proferido por José Alberto Dantas (1873-1935), em 1928, na bênção e inauguração do Cruzeiro do Monte do Galo: para esse historiador, segundo informações repassadas de geração a geração, Caetano Dantas teria “fundado” Carnaúba no século XVIII, mas, sua morte, em 1797, o impedira de deixar no lugar um marco de seu protagonismo. A “voz da Natureza”, nas palavras de José Alberto, fez com que os descendentes de Caetano Dantas ouvissem um galo cantar em cima do então chamado Serrote Grande, avisando que ali era o local definitivamente escolhido para a edificação do marco sonhado por Caetano Dantas, que morava na fazenda Picos de Cima, às margens do rio Acauã. Disso decorreu o movimento, abraçado pela Igreja Católica, de erigir um Cruzeiro em cima do serrote (a partir de 1928, chamado de Monte do Galo), em comemoração à fundação de Carnaúba. Em meados da década seguinte, iniciou-se o funcionamento da primeira instituição de educação formal na Povoação de Carnaúba, um grupo escolar que recebeu o nome de Caetano Dantas, reafirmando, assim, essa versão da história em que esse fazendeiro fora o fundador do lugar. As críticas a essa mitografia construída em torno da figura do senhor dos Picos de Cima começaram a surgir entre membros da família Azevêdo Dantas, igualmente descendente de Caetano Dantas, mas, que se sentiam incomodados com a preeminência atribuída a esse homem, que viveu no século XVIII. Numa versão da história de Carnaúba que Mamede Azevêdo escreveu nos anos de 1940, além de ser feita uma breve menção aos índios, são mencionados nomes de homens e mulheres que estiveram por aquelas paragens antes de Caetano Dantas, como é o caso de Braz Ferreira Maciel. Mamede Azevêdo, sem deixar de reconhecer o papel do patriarca dos Dantas enquanto um dos povoadores da região, questionou a inscrição do Cruzeiro do Monte do Galo que fala de “fundação” de Carnaúba atribuída a Caetano Dantas e, de forma ousada, aventou a possibilidade do lugar ter outras denominações, como Dantas da Carnaúba, Carnaúba do Braz ou Carnaúba dos Índios. Fechando seu argumento, demonstrou que as pessoas de Francisco de Azevêdo Dantas e Antonio Francisco de Azevêdo – seu avô e tio paternos, respectivamente – tiveram importante papel no processo que levou um dos sítios Carnaúba a tornar-se, gradativamente, uma povoação. Esse papel estava ligado à ideia primeira de implantação de uma capela dedicada a São José, bem como, a construção e manutenção do cemitério, fatos ocorridos no século XIX.  Uma terceira corrente surgiu nos anos de 1980, quando o historiador Pedro Arbués Dantas (1918-2008), baseado nos manuscritos de José de Azevêdo Dantas e em pesquisas com fontes orais e manuscritas, propôs que a fundação de Carnaúba fosse atrelada ao nome de Antonio Dantas de Maria (1845-1898), bisneto de Caetano Dantas e responsável pela doação de patrimônio territorial para a construção da Capela de São José e um dos iniciadores da primeira feira no então sítio Carnaúba de Cima. Os argumentos de Pedro Arbués estavam ligados à ideia de que a construção do templo religioso havia potencializado a transformação do sítio em povoação, contribuindo para o desenho do alinhamento espacial que faria surgir, anos mais tarde, a cidade, sede do município de Carnaúba dos Dantas.  Eu, particularmente, já fui adepto dessa terceira e última corrente sobre a “fundação” de Carnaúba dos Dantas, mas, hoje, penso de forma diferente. Acredito ser benéfica a possibilidade das pessoas escolherem quem acham que foi o “fundador” do seu lugar, porém, a temática sobre “fundação” e “fundador” requer uma melhor problematização do que apenas apontar datas, fatos e nomes de uma pessoa.

É possível, pelo próprio conjunto de narrativas inerentes à história e a forma como ela é contada ao longo do tempo, que Carnaúba dos Dantas receba novas versões de sua fundação após tanta pesquisa já realizada, sobretudo por você?

Sim, é possível e acho importante que novas versões apareçam, se historiadores, compromissados com a pesquisa e com o método científico perceberem novas nuances nas fontes históricas ou novas perspectivas de análise. Eu, falando de modo bastante particular, hoje, sou bastante receoso a discutir quem teria sido o “fundador” ou quando foi a “fundação” de um lugar. Penso que podemos avançar nisso e problematizar o porquê de determinadas pessoas terem sido indicadas à categoria de “fundador”, em detrimento de outras; as razões que levaram ao silenciamento de segmentos como os indígenas, as mulheres, os pretos, os pobres; e, também, pensar nos diferentes tipos de contribuição que pessoas tiveram para que um determinado espaço fosse, aos poucos, sendo transformado em território, com formas e funções definidas. Explorei um pouco essas questões num texto, intitulado “Caetano Dantas, fundador de Carnaúba?”, que abre um conjunto de capítulos tratando da história e da cultura carnaubense, no livro que organizei em 2012, o (Re)visões sobre Carnaúba dos Dantas. Considerando os nomes dos “fundadores” que listei na resposta anterior (Caetano Dantas, Francisco e Antonio de Azevêdo, Antonio Dantas), penso que é importante realçar em que cada um desses personagens contribuiu para o processo de territorialização do atual município de Carnaúba dos Dantas. Mas, os olhares sobre a história desse lugar não precisam e nem devem ficar centrados apenas neles. Por que não falar dos grupos de caçadores-coletores que nos deixaram as milenares pinturas rupestres e seus corpos sepultados, por exemplo, na Pedra do Alexandre? Por que não mencionar que havia grupos indígenas habitando o que foi chamado, posteriormente, de Riacho Carnaúba, quando chegaram os autoproclamados “colonizadores”, potencialmente, no século XVIII? Qual o pretexto para não falar das esposas e filhas dos fazendeiros que criavam gado e plantavam lavouras nas margens do Rio Carnaúba? E sobre a população de pretos, crioulos e mestiços, que foram escravizados e trabalharam nessas fazendas de gado, tendo deixado, inclusive, descendência… por que não os incluir nas páginas de nossa história? O silenciamento dessas pessoas e grupos nas tentativas de se contar a história local dói, sobretudo, nas pessoas que moram em Carnaúba dos Dantas, também se identificam como descendentes de índios, pretos ou mestiços, mas, ainda hoje, são obrigadas a ouvir, com veemência, os louvores a Caetano Dantas enquanto “o” fundador. Nunca foi tão urgente se problematizar esse assunto. Pessoas que têm, em suas árvores genealógicas, ancestrais indígenas, pretos e mestiços precisam, também, ter orgulho das vivências de quem veio antes delas. Recontar essas outras histórias é um bom ponto de partida.

Qual a maior dificuldade que você encontrou para contar a história de Carnaúba dos Dantas?

A principal dificuldade teve a ver com a busca por documentos que contivessem registros sobre a história local. Isso porque, no próprio município de Carnaúba dos Dantas, no início das minhas investigações, excetuando bibliografia e documentação epistolográfica encontrada na Biblioteca Pública Donatilla Dantas, bem como, fontes orais, documentos de outras naturezas só encontrei no próprio Cartório Judiciário. Como a história político-administrativa de Carnaúba dos Dantas é recente – o município foi criado pela Lei Estadual 1.028, de 11/12/1953 –, grande parte dos registros que falam das vivências de pessoas no Vale do Rio Carnaúba encontram-se em acervos fora do território municipal: no Cartório, no Fórum, na Paróquia, na Prefeitura e Câmara de Acari, município do qual Carnaúba dos Dantas foi desmembrado; na Paróquia de Caicó; no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte; e até mesmo no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal. Com o tempo, fui me acercando dos documentos presentes nesses arquivos e incorporando-os, em maior ou menor medida, nas minhas análises. Essa dispersão de fontes por diferentes instituições arquivísticas só mostra o quanto é imprudente tentar construir versões sobre a história local, apenas, com base naquilo que o município custodia, em termos de acervos. Posso relatar um bom exemplo acerca desse tema, que tem se sucedido ultimamente. Durante a pandemia do Covid-2019, retomei as pesquisas em acervos eclesiásticos disponibilizados no site do Family Search. Arthur Vinícius Medeiros, carnaubense e historiador em formação, aluno do CERES-UFRN, também tem feito recorrentes pesquisas nesses acervos e compartilhou comigo a informação de que diversas pessoas do Vale do Rio Carnaúba cumpriram seus ritos de passagem – batizado, casamento, sobretudo – nas regiões que hoje são fronteiriças com a Paraíba, encontrando-se, o registro desses atos, nos livros da Paróquia de Nossa Senhora das Mercês, da Serra do Cuité. Uma outra dificuldade no processo de contar uma versão sobre a história local tem a ver com o peso do eurocentrismo e do culto aos heróis, personificado na figura do “fundador”. De modo que, mesmo tendo publicado alguns textos tratando da temática desde os anos 2000, convidando a problematizar os temas da “fundação”, ainda assim, a percepção das pessoas me parece ainda presa a como se pensava a história no começo do século XX. Evidência disso é que, em maio de 2020, eu e o amigo Diego Gois, jardinense e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), lançamos em nossos perfis do Facebook uma enquete, com vistas a subsidiar um projeto futuro. Perguntamos, propositalmente, em postagem pública: 1. Qual o seu município de origem ou residência? 2. Quem fundou o município?. Nas respostas deixadas em meu perfil, por carnaubenses, a resposta foi unânime: Caetano Dantas Correia. Novas ideias, ou novas versões da história, portanto, talvez precisem de outros artefatos culturais, para além dos textos e dos livros, para que possam ser incorporadas no cotidiano das pessoas.

É fato que durante séculos a história foi contada pelo homem branco. De que forma essa história impressa em livros prejudicou ou prejudica a identidade do povo seridoense ou, mais especificamente, carnaubense?

Acredito que existem diferentes formas de se recontar a história de um lugar. Todas elas, feitas por eruditos ou por acadêmicos, sem exceção, são parciais e passíveis de serem criticadas, a posteriori, com o achamento de novas fontes históricas ou análises que apontem para outras miradas. O problema é que, muitas vezes, os livros de história local são lidos sem que as pessoas tenham a possibilidade de questionar suas afirmações. Vejamos alguns exemplos. Em Nomes da Terra (1968), de Câmara Cascudo, clássico da toponímia potiguar, o autor afirmou categoricamente que Caetano Dantas fundou Carnaúba. No breve verbete encartado no livro, paira um silêncio sobre índios, negros e mestiços. Quase dez anos depois, no esforço biográfico de O coronel de milícias Caetano Dantas Correia (1977), dom José Adelino Dantas questionou essa premissa e pôs em xeque a ideia de “fundação” pelo senhor da fazenda Picos de Cima, sem deixar de mostrar a sua importância para a territorialização do Rio Carnaúba e para a constituição de famílias que se instalaram por essas paragens. É bom lembrar que, quando se fizeram festejos, em Carnaúba dos Dantas e Acari, por ocasião dos 160 anos da morte de Caetano Dantas, em 1957, já dom Adelino Dantas havia agido como conciliador frente aos protestos da família Azevêdo contra a exaltação do patriarca enquanto “fundador”.  O resultado é que, na placa que se encontra junto ao monumento dedicado a Caetano Dantas, na praça e colégio de mesmo nome, o antigo bispo de Caicó inseriu um trecho que, na época, procurou atenuar os ânimos. Referia-se, dom Adelino Dantas, aos “Dantas do Seridó, que irmanados aos Azevedos povoaram estas terras e fundaram esta cidade”. Quando Donatilla Dantas publicou o seu Carnaúba dos Dantas – Terra da Música (1989), trouxe, em suas páginas, o discurso proferido por José Alberto em 1928, na bênção do Monte do Galo: uma “descrição histórica” de Carnaúba que enleva Caetano Dantas e os feitos de seus descendentes, ignorando, como Câmara Cascudo, a presença indígena, preta e mestiça. Se considerarmos a ampla difusão que esse livro teve – pouco tempo depois, o mesmo discurso foi publicado, como separata, pela família Alberto Dantas, e distribuído como plaquete, entre os carnaubenses –, não é de se estranhar que as visões críticas de dom Adelino Dantas e de Pedro Arbués Dantas sobre a “fundação” por Caetano Dantas não tenham sido levadas em conta, infelizmente. Tenho feito alguns esforços – poucos, reconheço – em busca de mostrar outras possibilidades de se ver a história de Carnaúba. No livro Carnaúba dos Dantas: raízes, fragmentos e história (2010), abordo de forma superficial a presença de caçadores que nos deixaram a arte rupestre pintada e gravada no leito do rio Carnaúba, riacho do Bojo e outros afluentes do primeiro; dos grupos indígenas que se autodenominavam otchakaione (chamados de tarairiu pelos holandeses ou tapuias pelos portugueses) e suas interações belicosas com os “colonos”; e algo de populações que foram escravizadas e trabalharam nas fazendas ao longo do Rio Carnaúba. Mas, é preciso mais que isso. Aguardo, ansiosamente, uma história de Carnaúba que seja contada pela perspectiva das pessoas pretas e seus descendentes. Do mesmo modo, uma outra versão da história, que enfoque o papel de mulheres enquanto protagonistas de seu tempo. Sobre uma história da homoafetividade no Vale do Rio Carnaúba, por enquanto, presente na memória das pessoas, é preciso, também, que se dê atenção, vindo a se constituir enquanto conhecimento produzido.

O que acha do ensino da história nas escolas de hoje? Em Carnaúba a história local é contada e de forma correta ou pelo menos é contada?

Algo mudou, por exemplo, desde que cursei as séries do antigo “Primário” até hoje. Aprendi, na disciplina de História, na infância, ainda com o sistema de anotações feitas no quadro, repassadas para nossos cadernos, cheias de datas, fatos e nomes de pessoas, com as causas e consequências dos processos históricos. A partir do Ensino Médio tive o prazer de ter uma professora de História, Maria da Paz Medeiros Dantas, que, ao lado dos métodos convencionais de ensino, nos fazia pensar um pouco “fora da caixa”, problematizando a História local, ao incluir, dentre as atividades avaliativas, por exemplo, pesquisas sobre o movimento de 1935 na Serra do Doutor e sua relação com o Seridó, além de visitas de campo a sítios arqueológicos, com posterior elaboração de relatórios. Da Paz foi e é, para mim, uma inspiração. (Tive uma experiência similar, em termos de formato, na Geografia, durante o “Ginásio”, com o professor Valdenildo Pedro da Silva, a quem sou grato, até hoje, pelas inspirações para ser um professor, também, de aulas diferentes e ao ar livre, sobretudo). Hoje, o ensino de História, na Educação Básica, precisa estar aberto à necessidade de formação de cidadãos críticos da sua realidade, partindo da observação e análise de sua história e de outros povos. Ainda que a atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tenha uma inspiração neoliberal – o que é extremamente preocupante –, tanto ela, quanto os Documentos Curriculares do Estado do Rio Grande do Norte possuem competências e habilidades ligadas ao conhecimento acerca da História Local e Regional em vários âmbitos. Nem tudo está tão perdido. Cabe aos professores de História encontrar os melhores caminhos para não perder de vista, em seu fazer cotidiano, a perspectiva de construir a capacidade, nos educandos, de exercerem seu pensamento crítico. Seria leviano, de minha parte, falar sobre o que está sendo feito, em termos do Ensino de História, em Carnaúba dos Dantas, hoje, vez que me mudei, de mala e cuia, para Caicó, em 2013. Mas, posso relatar algo que já vi e vivi, em tempos anteriores. Para começo de conversa, há uma Lei Municipal, em Carnaúba dos Dantas, do final dos anos de 1990, que institui a obrigatoriedade da ministração de conteúdos sobre história local atrelados aos currículos das escolas. Desconheço se, de lá até hoje, foi feita alguma ação formal, pelas gestões da Secretaria Municipal de Educação, no sentido de uma institucionalização dessa normativa. Independente disso, posso dizer que algumas educadoras realizaram importantes trabalhos, na Educação Básica, dentro e fora da sala de aula, com conteúdos ligados à História e Memória de Carnaúba dos Dantas, como Da Paz Medeiros, Fátima Lopes (Fatoca), Rúbia Dantas e Fátima Dantas (Fátima de Ronaldo). Certamente essas não foram as únicas pessoas a trazerem a História Local para o centro das preocupações, mas, foram professoras com as quais dialoguei, colaborei e aprendi em determinados momentos de minha vida.

É fácil, ainda hoje, perceber o forte grau de parentesco entre carnaubenses. Se sabe que os casamentos endogâmicos não foram exclusivos de Carnaúba. Mas é uma característica mais forte do que, por exemplo, outros municípios seridoenses?

Não, não é. As relações endogâmicas podemos encontrá-las em praticamente todos os municípios mais antigos do Seridó – e, quiçá, dos sertões, como um todo. Evidentemente, a impressão que temos do grau de parentesco mais próximo – que é uma realidade, até certo ponto, especialmente para as pessoas de hoje cujos ancestrais sempre moraram pelas terras carnaubenses – tem a ver com a hegemonia de uma determinada família, a Dantas, no processo de territorialização das antigas espacialidades indígenas e sua transformação em ribeiras, sesmarias, fazendas, sítios, povoação, vila e cidade. Em outros termos, o epíteto Dantas, que se cola ao Carnaúba, simboliza a presença marcante dessa família, da qual, um dos patriarcas, foi o já tão falado Caetano Dantas Corrêa, morador da fazenda Picos de Cima. Pouco se fala, em função da ausência de fontes, todavia, do seu irmão, Gregório Dantas Corrêa, que foi casado e dono de parte das terras do Riacho Carnaúba. Esses Dantas juntaram-se a outras famílias que vieram ao Seridó, como os Medeiros, Araújo, Azevêdo, Gomes, Silva, Hipólito, Nóbrega… E a endogamia foi bastante forte entre os Dantas, associados a essas outras parentelas. Tomemos o caso da primeira geração dos filhos de Caetano Dantas e Josefa de Araújo. Dos 17 filhos que sobreviveram, alguns exemplos merecem ser sublinhados: os irmãos Francisca Xavier Dantas e Caetano Dantas (2º) casaram, respectivamente, com dois irmãos, João Cristóstomo de Medeiros e Luzia Maria do Espírito Santo; a segunda esposa de Simplício Dantas, Ana Francisca de Medeiros, era sua sobrinha legítima, filha de João Crisóstomo e Francisca Xavier; a esposa de Alexandre José Dantas, de nome Joana Francisca de São José, igualmente, era sua sobrinha, filha legítima de Francisco Gomes da Silva e de Maria Joaquina dos Santos; as irmãs Ana Dantas Pereira, Izabel da Rocha Meireles e Maximiana Dantas Pereira casaram com três irmãos, respectivamente, de nomes Antonio Tomaz de Azevêdo, João Filipe da Silva e Luiz Joaquim de Santana – esses últimos, primos, por sua vez, do Francisco Gomes da Silva anteriormente citado. Se essa descrição sintética da endogamia entre os filhos de Caetano Dantas já nos faz quebrar a cabeça, é de se imaginar o quanto as relações se complexificaram com o passar dos anos e o surgimento de novas gerações. Não vou muito longe, pois, na minha família paterna, há alguns exemplos parecidos: meu avô, Chico Macêdo, casou com duas irmãs, Ana Cesária e Raquel Paulina – essa, minha avó; minhas tias Josefa e Eliza foram casadas, respectivamente, com dois meios-tios legítimos delas, Francisquinho e Calixto; a avó materna da minha avó paterna, de nome Maria Paulina da Conceição, era meia-tia legítima de seu esposo, José Laurentino de Araújo, com o que eu paro, para não tomar as páginas dessa revista. Voltando aos Dantas, não posso deixar de assinalar, também, que, nem toda pessoa que carrega esse sobrenome é necessariamente “branca” ou descendente de Caetano Dantas. Num artigo que publiquei na Tribuna do Norte (Nem todo Dantas descende de Caetano Dantas Corrêa), em 19 de julho de 2020, exploro os ramos familiares cujas pessoas completam o seu nome com o sobrenome Dantas, mas, são descendentes de crioulos, mulatos ou pardos, que, em períodos recuados, entre os séculos XVIII e XIX foram escravos, libertos ou forros – alguns dos quais mantiveram relações, via escravidão, com a família de Caetano Dantas. O estudo de genealogias de famílias não necessariamente brancas, como aquelas que possuem, em seus ancestrais, pretos, índios, pardos, crioulos, cabras, mulatos, é algo urgente e que precisa ser feito. Num livro que há anos venho preparando sobre a descendência de Caetano Dantas Corrêa tenho procurado, nos capítulos que tratam dos filhos do citado patriarca, demonstrar, também, a depender das fontes disponíveis, as linhagens de escravos, libertos e livres que viveram atreladas ou não às casas de fazenda no Rio Carnaúba. Espero, um dia, concluir essa obra, cujo desejo partiu desde o distante 1991.

Qual o DNA do carnaubense?

Não há um, mas, múltiplos. Afinal, como bem disse o mestre Muirakytan Macêdo, no prefácio para o livro que organizei em 2004, Ritmos, sons, gostos e tons do patrimônio imaterial de Carnaúba dos Dantas, “Os carnaubenses são infinitos, como a própria aventura da humanidade”. Penso que ser carnaubense não significa, necessariamente, ser descendente de Caetano Dantas ou professar algum credo oriundo do Cristianismo. Eu arriscaria dizer – mesmo admitindo que poderei ser questionado – que parte do que constitui o ser carnaubense pode ser a visita, ao menos uma vez na vida, à nossa Meca, o Monte do Galo, mesmo que a subida ao serrote não tenha como finalidade o contato com o mundo espiritual. Diria, também – e me permitam, os leitores, uma licença poética –, que ser carnaubense significa, também, sobretudo para aqueles que residem longe, voltar ao município e encontrar um lugar aconchegante para estar, seja em casa de familiares, seja na morada de amigos.

Do ponto de vista geográfico, o que torna Carnaúba singular?

A primeira imagem que vem à minha cabeça, ao pensar na resposta a essa pergunta, é o trecho de um poema besta que escrevi na década de 2010, chamado Canção do (meu) exílio, após subir um serrote no sítio Monte Alegre, com o amigo Alexandre Dantas Filho e, de lá, contemplarmos, embevecidos, a cidade, o Monte do Galo, o Castelo de Bivar, os Cabeços Lisos, as serras Nova, do Marimbondo e da Rajada. Anotei, na ocasião, algumas ideias num bloco de notas, no celular e, em casa, imaginei: “Dos nossos céus, estrelados, enluarados,/ Anjos veem um monte escarpado, com um cruzeiro/ Uma serra ensimesmada, embotijada, Rajada/ Uma velha quixabeira, no meio da cidade, sobeja/ Um castelo em tons-de-cinza, de pedra, Bivar/ Saudades das noites de sítio, do tempo de férias/ De olhar o mundo dos céus, cósmico, estelar.” É certo que não fui o primeiro a cantar o quanto a cidade de Carnaúba dos Dantas é bela, por estar localizada num vale, cortado pelo rio homônimo, e rodeado de serras, como as que já nomeei. Uma pessoa que sai de Picuí-PB, com destino à cidade de Carnaúba dos Dantas pela RN-288, ao chegar no pináculo da Ladeira da Pedra Caída, se depara com uma cadeia de serras e serrotes que se espraiam com direção ao poente, sendo possível divisar, ao longe, dentre outras, as serras do Xiquexique e o Monte do Galo. De outro ângulo, vinda de Jardim do Seridó e deixando a BR-427 para seguir pela RN-288, uma pessoa que faz essa jornada é abençoada com o inselbergue da Rajada, testemunho de muitas histórias. Ali mesmo, do Trevo da Rajada, se consegue captar a imponência do Monte do Galo, que reina, soberano, sobre Carnaúba dos Dantas. E, se essa viagem for durante o dia, podem-se fazer valer os versos de Abel Rodrigues de Carvalho para o Hino de Nossa Senhora das Vitórias ao se observar a resplandescência que grita “No cimo do monte, o cruzeiro reluz”. Outros carnaubenses, anteriormente, também pintaram de tons telúricos, em versos, as memórias sobre a geografia do lugar, como a pintora Amélia Azevêdo, conhecida como Melhinha, filha de Mamede Azevêdo, de quem já tratamos. No poema “Pagina Intima – Recordando minha querida terra Carnauba”, escrito em Campina Grande, em 1977, ela enuncia que “Carnauba tem bonitas serras/ Todas aquelas terras/ São um paraiso tropical!/ Tem arvores frondosas/ Com perfume de rosas/ E um lindo campo florestal!”. Anos mais tarde, o mestre França (Francisco Rafael Dantas) produziu o encantador poema “Me orgulho em ser filho dessa terra”, que integra o livro Retalhos dos meus poemas (1996). A quarta estrofe incendeia essa relação visual do povo carnaubense com o mundo físico: “Carnaúba dos Dantas é vigiada/ Pelas serras gigantes que a rodeiam/ Dando embalo aos ventos que passeiam/ Deixando a cidade vasculhada/ A direita por um rio ela é banhada/ Onde surgem bonitos coqueirais/ Pra servir de palanque aos sabiáis/ E aos craúnas que juntos em alegria/ Fazem lindos duetos de harmonia/ Com as suas orquestras naturais.” Essas são leituras poéticas que ainda me fazem cultivar, mesmo à distância, o bem-querer por Carnaúba.

@homem.do.ceu

Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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