PREÁ CARNAÚBA DOS DANTAS: Religiosidade e música moldaram história e identidade do município

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É complexo delimitar identidades, vocações e crenças de um povo. Carnaúba dos Dantas é muito mais que a “Terra da Música” – título conquistado por lei estadual decretada em 10 de junho de 2021. Sim, a herança musical do maestro Tonheca Dantas impregna cada quarteirão. E junto às crenças religiosas rogadas a São José e Nossa Senhora das Vitórias parecem moldar a figura do carnaubense. Os retoques finais dessa peça são revestidos de nuances distintas: cores das tantas serras que cercam sua geografia, o avermelhado da pele dos índios tapuias, a tradição pecuarista responsável pelo ajuntamento de colonizadores no século 19, ou da aura singular e mais abrangente que une a alma comum da nação Seridó.

Figuras proeminentes e artistas de toda sorte também contam muito desse caleidoscópio cultural e histórico – registros revestidos de orgulho e com sabor de chouriço. É gente que não morre, como Donatilla Dantas, fundadora da biblioteca da cidade e uma das grandes inteligências da história carnaubense; José de Azevêdo Dantas e sua obra arqueológica e memorialística; Dadi e seus mamulengos; Felinto Lúcio, outro gênio musical, discípulo de Tonheca; ou Dom José Adelino Dantas, carnaubense de coração e uma espécie de papa do Seridó de outrora.

Para além da pouca sombra das algarobas que pontificam quarteirões da cidade, personagens como Dedé Carnaúba e Geraldo Oliveira também emolduram a imagem de Carnaúba dos Dantas por talhos e formas. Carlinhos exporta o nome da cidade seja como guia turístico ou notícia curiosa como autodidata no aprendizado do inglês de tanto ouvir a rádio BBC de Londres, a mesma que tocou a Royal Cinema de Tonheca durante a Segunda Guerra Mundial, mas atribuiu a valsa a “autor desconhecido”. Wagner Cortêz traz a beleza do sertão carnaubense em prosa e verso e prossegue a linhagem do cordelista França. Dean sobe e desce a Serra do Xiquexique para mostrar aos curiosos a história por trás da história.

E é essa história não contada pelo historiador branco e hoje relatada por Dean o enceto de tudo, grafada por outras figuras humanas. São figuras morenas, irmãs do sol sertanejo e dos segredos da natureza. Figuras que contam os primórdios de Carnaúba dos Dantas por ilustrações. A cidade abraça 101 sítios arqueológicos – fósseis da história. Neles, índios Tarairiu ou Tapuia desenharam nas rochas serranas a gênese carnaubense 10 mil anos atrás. Saberes e fazeres indígenas permanentes até hoje, perpassados entre gerações até chegar à artesã Joana ou à benzedeira Terezinha.

São tradições preservadas, mas sem futuro garantido. O século 21 escancarou novos mundos pela fibra óptica nesse espaço-tempo de milênios, desde as primeiras pinturas rupestres até os 246 km2 da cidade do tempo-hoje. Embora o 4G não tenha ultrapassado o Vale do Rio Carnaúba, são raras as residências sem wi-fi. E com ele, o universo dentro do sertão. O maestro da Filarmônica 11 de dezembro, Márcio Dantas de Medeiros forma dezenas de novos músicos todos os anos, mas o filho Márcio José Dantas de Medeiros sonha ser jogador de futebol, inspirado no carnaubense Ayrton Lucas, hoje jogador do Spartak de Moscou, na Rússia, que descobriu pela internet.

Carnaúba dos Dantas by Raíssa Tâmisa

Carnaúba dista apenas 230 km da capital. Os povoados da Rajada e do Ermo, além dos vales e serras como a do Xiquexique, circundam o Centro e mais três bairros: São José, Dom José Adelino Dantas e Santa Rita de Cássia. A cidade está encravada no Polígono das Secas. Não à toa, o torrão do sol do meio dia afasta até o nativo mais resistente das ruas. Carnaúba dos Dantas, mesmo com mais de 8 mil moradores, parece cidade fantasma nesse horário. O Rio Carnaúba, principal curso d’água do município, estava completamente seco em um setembro inclemente, durante presença da equipe da Preá na cidade.

E sob o sol escaldante ou a lua límpida e sertaneja, uma paisagem se destaca em qualquer quadrante da cidade: o Santuário Monte do Galo, o Everest possível para milhares de romeiros que, juntamente à atividade de 14 indústrias cerâmicas, contribuem para movimentar a economia carnaubense. E se o turismo religioso corrobora a vocação fervorosa daquele povo, outra construção monumental ali próxima denota uma excentricidade à parte: um castelo de arquitetura medieval em pleno sertão potiguar, o Castelo de Bivar, fechado ao turista e aberto à mente criativa e sonhadora de José Ronílson Dantas.

E no começo eram os índios

E de sonho e de sangue se monta o quebra-cabeça da fundação de Carnaúba dos Dantas. No Gênesis da cidade, eram os índios tarairiu os governantes do lugar. Eles viviam da caça, do mel e de frutos silvestres, confeccionavam cestarias e outros artesanatos e habitavam as margens do Rio Carnaúba. Havia harmonia entre homem e natureza. E então chegou o colonizador branco, em meados do século 17, impulsionado pela criação do gado em vastas e inóspitas terras, longe do litoral já dominado pela cana de açúcar. As batalhas entre invasores e nativos foram inevitáveis, entre elas a Guerra dos Bárbaros.

Milhares de índios foram dizimados. Outros se tornaram vassalos dos colonizadores e da Igreja Católica. Muitos fugiram para outras capitanias. Algumas índias, conhecidas na memória oral como caboclas brabas, subiram ao alto das serras. Com os nativos indígenas dispersos ou submissos e a consequente diminuição dos embates, recomeçaram os processos de doação de sesmarias daqueles chãos. O primeiro sesmeiro da região foi Luís Quaresma Dourado. Em 1718 ele repassa o domínio das terras ao tenente Brás Ferreira Maciel.

A partir da segunda metade do século 18 começa a era do coronel paraibano Caetano Dantas Corrêa, tido como patriarca do que viria a ser Carnaúba dos Dantas, hoje nome da praça, monumento e de escola. Ele compra as terras de Brás Ferreira Maciel e outras porções territoriais nas redondezas. Junto à esposa Josefa de Araújo Pereira espalhou 17 filhos em suas terras. O historiador Helder Macêdo, em suas pesquisas, levanta a hipótese de Caetano ter desposado a índia Micaela, nome, inclusive, da primeira filha do casal Caetano e Josefa. Independentemente dessa veracidade, são bem comuns traços indígenas entre carnaubenses.

Caetano morreria em 1798 e Josefa em 1816. Quatro dos 17 filhos do casal tiveram importância ímpar no povoamento do município. Mas infelizmente pouco ou nada restou das antigas casas de fazenda de outrora. As primeiras casas do atual perímetro urbano da cidade foram construídas, provavelmente, no fim do século 19, de propriedade dos bisnetos de Caetano: Antônio Dantas de Maria e Maria José de Jesus, filhos de José Dantas e Maria Rosa. José Dantas foi filho do primogênito de Caetano, também chamado Caetano e sua esposa Luzia Maria.

Carnaúba dos Dantas e da fé

A fé que remove montanhas também foi responsável pelo adensamento da cidade. Por essa mesma época seria erguido, no Vale do Rio Carnaúba, um templo dedicado a São José, o santo das chuvas. Seria a primeira construção em alvenaria da atual cidade, depois destruído por forte tempestade em 1881 e reerguida no local uma capela no alvorecer do novo século, em 19 de março de 1900. A capela se fez chamariz para a povoação das redondezas. E o crescimento da população provocou a demolição da capela para construção de uma igreja iniciada já em 1910.

Hoje há feriado municipal dedicado ao santo padroeiro e uma tradicional festa religiosa no mês de março. E as demonstrações de fé e religiosidade não param por aí. No mesmo mês há ainda celebrações da Semana Santa e Páscoa e uma encenação da Paixão de Cristo. Em maio se comemora o Mês Mariano e a Festa de Santa Rita de Cássia, padroeira do bairro homônimo. Em junho e setembro é a vez de Santo Antônio e São Francisco, padroeiros do povoado Rajada e Ermo, respectivamente. No mês seguinte, a padroeira do Monte do Galo, Nossa Senhora das Vitórias, recebe a fé de romeiros e nativos. Em novembro se celebra a Cruzada Evangelística Carnaúba para Cristo. E finda o ano com mais devoções, a São Bento e a Santa Luzia, afora as celebrações natalinas.

E da seca e da pouca chuva. Da fé e do empirismo profético ante os sinais naturais. Dos vales, sentinelas do tempo. Das gravuras cotidianas cravadas nas serras da gênese. Da música que passeia faceira e amiga pelas ruas da cidade. Do Castelo e do Monte. Do Seridó irmão de sangue, da Paraíba prima-irmã. Dos índios, dos brancos e dos negros. De ilustres e anônimos. Da história bem contada por filhos historiadores. Disso é feito a Carnaúba dos Dantas, dos Medeiros, dos Azevêdos ou de qualquer cidadão, de ontem e de hoje que se autointitular carnaubense.


FOTOS e VIDEODOCUMENTÁRIO: Raíssa TâmIsa

Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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