Finalmente um produto de dramaturgia capturou os anseios, os conflitos e as tensões atuais da luta racial
À primeira vista, “Cara gente Branca” (Netflix, 2017, criada por Justin Simien, baseada no filme homônimo de 2014) é apenas uma comédia sobre universitários. Bem à primeira vista. Já logo após a abertura, entendemos que a série veio para cutucar questões sociais até então adormecidas na dramaturgia.
É comum que séries, filmes e novelas explorem o tema do racismo (é um excelente pontapé dramático para contar histórias com alta carga de conflito), mas em geral esses produtos trabalham com o racismo clássico — a saber: escravidão, Apartheid, segregação social. Ou seja: a dramaturgia acaba explorando o tema apenas em seu viés mais exagerado, dando a sensação confortável de que o racismo é um problema bem distante de nossas vidas.
Não é.
O que “Cara Gente Branca” traz de novo é isso: a série explora o racismo cotidiano, aquele tão sutil e tão velado que até pode ser disfarçado de piada ou opinião — o racismo que você provavelmente já vivenciou, como vítima ou como algoz.
“Cara Gente Branca” expõe esses conflitos com humor ácido, por vezes incômodo, mas tão próximo à realidade que é impossível não se sentir tocado. A série não é militante, mas é sobre militância. Neste sentido, é uma série para todos: negros, brancos, índios etc.
“Cara gente branca, aqui vai uma lista de fantasias de Halloween permitidas: piratas, enfermeiras gostosas e qualquer um dos nossos 43 presidentes. Topo da lista de fantasias inaceitáveis: eu.”
É com esse conselho que Sam (Tessa Thompson) inicia seu programa na rádio universitária logo após a desastrosa festa de Halloween que uma irmandade organiza. O episódio é o grande fio condutor da série: querendo fazer humor, os alunos brancos do tabloide Pastiche organizam uma Blackface Party — ou seja, uma festa em que brancos vão fantasiados de negros. Mas os negros da universidade não ficam nada contentes com a piada: invadem a festa, destroem o equipamento de som, ameaçam os convidados e tudo vira um caso de polícia.
Em cima desse conflito, a série se constrói: é ofensivo quando um branco se fantasia de negro?; é legítimo lançar mão da liberdade de expressão para defender um ponto de vista racista?; é possível que brancos e negros convivam pacificamente depois de tudo que já aconteceu?
Sam, que apresenta o programa “Dear White People” na rádio da Universidade de Winchester, compra essa briga e parte pra cima do pessoal do Pastiche, se transformando num símbolo da luta racial. Mas Sam tem um segredo. Ela namora Gabe, um homem branco que não está mais a fim de manter a relação em segredo.
A guerra de Sam contra o pessoal do Pastiche vai deflagrar diversos conflitos na universidade. E é aí que entram as historias paralelas.
Troy (Brandon Bell), por exemplo, está prestes a ser o primeiro negro eleito para a presidência do centro acadêmico. Orientado por seu pai, que é reitor da universidade, Troy tenta não tomar partido na tensão que cresce entre brancos e negros — e assim vai mostrando como muitos oprimidos se acostumam a agir como o opressor para serem plenamente aceitos.
Já Coco (Teyonah Parris) nos mostra como a opressão pode fazer com que sigamos caminhos totalmente alheios à nossa cultura. Objetificada como a maioria das mulheres negras, Coco é inteligente, sagaz e forte, mas está sempre relegada ao papel de amante ou namorada silenciosa. Coco precisa entender seu papel no mundo, como todos os seres humanos, mas com uma diferença: para entender seu papel, precisa entender primeiro os males que a sociedade machista e racista causam em sua história de vida.
Enquanto isso, o calouro Lionel (Tyler James Williams) entra para a equipe do jornal da universidade com profundos questionamentos sobre sua sexualidade. Como escapar do esteriótipo de homem negro viril e hipersexualizado para fazer com que compreendam que ele é mais complexo que essa simplificação?
A recusa de Lionel em se encaixar em um rótulo (gay, hétero, bi) é quase um ato de resistência: é o homem negro negando-se a ser qualificado apenas pelo que a Casa Grande permitiu. Enquanto apura a historia que jogou brancos e negros para lados opostos, Lionel vai criando seus próprios rótulos — e lutando contra eles.
A questão racial ganha o olhar do outro, numa inédita inversão de perspectivas neste tema, quando temos acesso ao ponto de vista de Gabe (John Patrick Amedori). O novo namorado de Sam é branco, hipster e entusiasta de causas sociais. Mas as limitações que a própria luta racial impõe a brancos que convivem com negros parecem estar atrapalhando seu relacionamento. Quando Sam está chateada comum caso de racismo, por exemplo, Gabe tenta demonstrar empatia e recebe de volta a seguinte resposta: “Você nunca vai entender a dor do meu povo”. A série retrata bem o impacto que o empoderamento do negro tem na vida dos brancos.
“Cara Gente Branca” trata de conflitos atuais, que muito provavelmente ocorrem no seu ambiente de trabalho, na sua escola ou na sua casa. Como, por exemplo, o branco que não se considera racista porque tem amigos negros — e por não se considerar racista, se acha no direito de fazer piadas racistas sob o argumento da liberdade de expressão. Ou então a mulher negra que é objetificada a ponto de aceitar essa objetificação — e alisa o cabelo, e adota hábitos que não são da sua cultura, e renega seu passado, tudo para ser aceita no clubinho dos homens brancos.
A sequência em que um personagem negro repreende um branco por dizer “nigga” é um resumo quase didático do conflito. Os dois estão cantando um hip hop numa festa e o negro se sente ofendido quando o branco, seguindo a letra da música, entoa um verso que termina com “nigga”. O branco não entende por que aquele fato ofende o negro; o negro se irrita porque o branco não faz esforço algum para compreender a questão.
Em determinada hora, o negro pergunta: “Se eu te chamasse de branquelo azedo, você se ofenderia?” O branco prontamente responde: “Não”. E aí vem a resposta que encerra a questão. Sem condescendências, o negro joga a sua tréplica: “Pois é, essa é a diferença entre nós: eu me ofendo quando você me chama de crioulo”.
Convenhamos, não é tão complicado compreender. É só ter um pouquinho de generosidade.
https://www.youtube.com/watch?v=0JYNCLcYVWk
DE ZERO A DEZ: ★★★★★★★★★✩
Cara Gente Branca — 1ª Temporada — EUA, 2017
Criação: Justin Simien
Direção: Justin Simien, Tina Mabry, Barry Jenkins, Steven Tsuchida, Nisha Ganatra, Charlie McDowell
Roteiro: Justin Simien, Chuck Hayward, Njeri Brown, Leann Bowen, Jack Moore, Nastaran Dibai
Duração: 10 episódios de aprox. 30 min.
Inspirado na série, resolvi fazer a minha própria listinha de conselhos para as pessoas brancas. Lá vai:
Cara gente branca,
1. Não, eu não sou parecido com Will Smith, nem com Shaquile O’Neal, nem com Joaquim Barbosa. Nós apenas somos negros. As semelhanças acabam aí.
2. Quando você diz “Ela é uma negra bonita” é sim racista. Afinal, você nunca diz “Ela é uma branca bonita”.
3. Eu não sei de onde veio minha família. Só sei que em algum momento meus antepassados foram propriedade de uma família portuguesa. Isso provoca um vazio em minha trajetória que você nunca vai compreender.
4. Nenhuma intimidade é suficientemente forte a ponto de permitir piadas racistas. Quando você pressupõe isso, está apenas sendo racista. Da pior espécie.
5. Meu pau não é enorme. Parem com isso, por favor.
6. Cabelo bom é cabelo hidratado, brilhante e bem nutrido. Parem de chamar cabelo crespo de cabelo ruim. É vergonhoso.
7. Quando eu afirmo que você tem privilégios, não estou dizendo que sua vida é fácil. Estou apenas afirmando que enfrentei e enfrentarei alguns problemas na vida que nunca acontecerão com você.
8. Você não sabe a sensação de desterro e desesperança que dá quando alguém muda de calçada por se sentir ameaçado com sua presença.
9. Eu achava que não era negro. Consegue imaginar? Eu me olhava no espelho e via uma criança branca. Enquanto isso, no colégio, meu melhor amigo me chamava de boneco de piche.
10. Beyoncé é negra. Aceite.
1 Comment
Adorei! Eu adoro ver Lena Waithe participando de filmes e séries, sigo muito o trabalho desta atriz, sempre me deixa impressionada em cada nova produção. A vi recentemente em Jogador No 1, se você esta procurando assistir filmes de ação 2018 eu recomendo! É um filme muito bom, é uma boa opção para uma tarde de filmes. Se ainda não tiveram a oportunidade de vê-lo, eu recomendo, na minha opinião, este foi uma dos melhores filmes que foi lançado. O ritmo é bom e consegue nos prender desde o princípio, a historia está bem estruturada, o final é o melhor.