Me visto de “bicha” no domingo de carnaval desde o século passado. Esse ano participei apenas do bloco As Kengas, no Centro Histórico, e abandonei As Raparigas da Redinha pelo segundo ano consecutivo.
Gosto desse dia pela irreverência, pela brincadeira, pela tiração de onda. Mas também vibro com a ilusão proporcionada nesses domingos carnavalescos.
Coincidentemente assisti hoje ao clássico documentário ‘Paris is Burning‘ (Paris é ardente, em tradução livre), lançado em 1991 e de contexto sociocultural ainda atualíssimo.
O filme retrata o cenário comportamental dos gays de uma época devastada pelo preconceito, reforçado pela disseminação do HIV.
As “houses” do Harlem, em Nova Iorque, bairro conhecido pela concentração de afro-americanos, se transformam no universo paralelo onde drags queens e travestis encontram ambientes de aceitação e uma nova família.
E ali se forma uma nova cultura musical, linguística, comportamental. Algo parecido com a cena clubber no início dos anos 80 (tem um filme sobre a trajetória de Boy George que mostra bem isso). E no Harlem, os desfiles eram o ponto alto desse novo mundo.
E nesses desfiles havia o corpo modelado, a criatividade, o luxo e, mais do que isso, um objetivo de vida. Vencer esses desfiles representava a projeção de um nome e a possibilidade de criar suas próprias “houses”. Verdadeiras guerras de plumas e vaidades eram travadas.
A fantasia de serem estrelas, modelos e esquecerem a dureza daqueles tempos de preconceito, violência e total exclusão e ainda se projetarem profissionalmente, moravam ali naquela passarela.
O desfile d’As Kengas, na Natal do novo século, tem um pouco disso. Sim, o deboche, mas também o protagonismo de um dia de estrelas e uma disputa mais sadia, mas também desejada.
É mágico presenciar o orgulho dessas drags, sejam as do palco ou as das ruas, assistirem as palmas e olhares do público para suas fantasias. Um dia, talvez um único dia de completa atenção social e de um luxo escasso em outros 364 dias no ano.
Se nas houses do Harlem, as drags são as protagonistas em um universo paralelo protegido da homofobia e do racismo, em uma completa alegria onusta, As Kengas dividem sua alegria com famílias, héteros e todo um carnaval de tipos e gêneros.
Afinal, somos século 21, mentes evoluídas (?). Mas pensem: As Kengas surgiram em 1983, época de uma realidade ainda mais perversa contra o gay do que o início dos anos 90 retratados no filme. Por isso merece o reconhecimento pela ousadia, pela coragem.
E se o filme trata muito mais de sobrevivência dos gays de Nova Iorque, e aqui nós tratamos de um bloco de carnaval, há que se saudar o pioneirismo de Lula Belmont, de Marcos Sá e companhia, porque naquele ano de 1983 uma passarela foi aberta ao futuro.
Portanto, viva As Kengas, hoje conectadas com o mundo.