Saudações, nobres cervejeiros!
Quem acompanha ou já leu alguns dos meus textos semanais na coluna do Blog já deve ter notado (ou, pelo menos, sentido) que eu não sou o maior dos entusiastas das cervejas azedas (isto é, melhor dizendo, das ácidas de um modo geral). E isso tem um pouco a ver com o tema de hoje, eu confesso.
Mas, para além do meu gosto (ou seria, desgosto) pessoal com relação às cervejas denominadas como Sour, um fato objetivo, que, certamente, perpassa totalmente a percepção individual do assunto escolhido, é que há um dissenso antitético naquilo que gestaram sob a alcunha de Sour Lager.
Existem algumas heresias cervejeiras sendo vendidas como “criatividade”, “inovação” ou “empreendimento ousado” no mundo das cervejas artesanais. Eu estou longe de compreender que o rito cervejeiro deva ser algo fechado, hermético ou que deva lançar mão da criatividade e das evoluções naturais dos estilos. Longe de mim, contudo, não posso deixar passar que a criação de algo que junte Sour e Lager passa além dos limites da aceitabilidade.
As dissonâncias conceituais e estilísticas ao juntar esses dois termos são muitas, por causa disso, eu acredito que o texto de hoje será repleto de ironia, perplexidade e, claro, muitas críticas, por que não, não é mesmo?
Enfim, quem se interessar em uma rebordosa sincera, pode acompanhar o desenvolvimento textual que se segue adiante!
Saúde!
Uma característica comum à Lager: seu perfil não-esterificado
Quando se fala em cervejas do tipo Lager quase que instantaneamente o que se vem à mente são as “Pilsen abrasileiradas de massa”. Por mais que seja um arquétipo usual do nosso pensamento cotidiano, essa formulação imagética passa longe de tudo que as cervejas Lager representam dentro da cultura cervejeira.
Já escrevi um pouco sobre esse tema em alguns textos (clique AQUI , ou AQUI ou ainda AQUI), inobstante, o intuito do tema de hoje não é conceituar o que são cervejas do tipo Lager, tampouco fazer uma defesa purista do que elas representam.
Ainda assim, acho muito salutar ressaltar, mais uma vez, diga-se de passagem, que elas não são apenas aquela cerveja amarelo palha, sem muito aroma ou sabor, feitas para serem bebidas estupidamente geladas. Elas são isso também, mas não só isso. Existem outras cervejas de estilos diferente que integram a grande família Lager que não correspondem a esse estereótipo massificado.
Contudo, se há algo característico a todas as cervejas que podem ser denominadas como Lager é que elas são despidas, completamente, de qualquer forma ou apresentação de esterificação.
De maneira técnica, esterificação é um conceito da química que se traduz no processo de reação entre álcool e ácido carboxílico para formação do éster. A reação de esterificação é aquela que ocorre entre um ácido carboxílico e um álcool, originando os produtos água e o próprio éster; por isso essa reação é denominada esterificação. Ela é a reação inversa é denominada hidrólise.
Para a compreensão cervejeira do tema, é necessário ter em mente apenas que os ésteres são os responsáveis por notas frutadas (ou que se assemelhem ao perfil frutado). Dessa maneira, qualquer forma de fermentação que não tenha um resultado neutro e limpo, acabará resultando em uma esterificação do produto final.
As leveduras têm uma enzima, denominada Acetato Transferase (AAT), que catalisa a produção de ésteres. Quanto maior a quantidade dessa enzima na levedura, mais esterificada será a cerveja. Leveduras do tipo Lager produzem uma quantidade baixíssima de ésteres, algo quase imperceptível na cerveja.
Assim, resumidamente, as cervejas do tipo Lager variam entre si, estilo a estilo, com características próprias e peculiares, umas sendo mais inertes (como a “Pilsen” de final de semana) e outras sendo mais potentes e doces, como as Bock. O elo que as une é serem todas despidas de esterificação.
Sour Ale: o nome já diz ,muito sobre a cerveja
Nos manuais cervejeiros, os estilos costumam ser agrupados dentro de famílias, para fins de agrupamento de similaridades e diferenças entre os mais diversos estilos existentes. Quando vamos falar das cervejas azedas (do inglês: Sour), elas são todas agrupadas sob a denominação de Sour Ale.
Como dito no título, a denominação dada aos estilos reunidos nesse agrupamento estilístico diz muito sobre a análise sensorial dessas cervejas. As cervejas são ácidas e são do tipo Ale. Daí, consequentemente, a família cervejeira ser denominada de Sour Ale.
Mas por que, então, que as cervejas ácidas são feitas com levedura Ale?
A resposta mais clara e menos discutível é que as cervejas da família Sour Ale não podem ser inertes, no sentido de ter uma fermentação neutra, que não privilegie temperaturas mais altas durante seu processo, algo que facilita e promove a formação de ésteres.
Dizendo a mesma coisa de maneira mais simples e direta: uma cerveja ácida precisa de um componente frutado em sua composição para que seja minimamente harmoniosa, dentro de sua composição sensorial.
É claro que há variações entre as mais diversas cervejas ácidas do seu caráter frutado. Exemplificativamente, uma cerveja do estilo Gose ou uma Berliner Weisse, feita na maneira tradicional, terá um frutado mínimo quando comparada com uma Smoothie Sour comercial hypada modinha qualquer. Porém, uma Gose será infinitamente mais frutada que uma Pilsen, seja ela massificada ou não.
Portanto, essas são características históricas e produtivas que fazem com que os estilos de cerveja sejam como eles são. Não há como se fugir dessa padronização sem gerar algo antitético, confuso, herético e contraditório, em termos de conceituação cervejeira.
Modulando a antítese ou sacralizando a heresia cervejeira na Sour Lager
Como já explicitado nas seções anteriores, juntar uma cerveja Sour com uma levedura Lager é algo contraditório em sua própria essência, é como alguém torcer pelo Vasco trajado com uma camisa do Flamengo, ou o seu inverso. Não é algo que combina de maneira harmônica, dadas as características inerentes das duas coisas não se combinarem de forma alguma.
Todavia, a mão do cervejeiro marqueteiro é algo que coça sempre que ele quer lacrar com algo que possa vir a “hypar”. E assim como a barba serve de maquiagem para o homem feio, ou tal e qual o bacon costuma salvar a receita mequetrefe de qualquer mestre cuca incipiente, o cervejeiro em tela sabe bem como modular a antítese que tem diante de si.
A receita para o sucesso mambembe de quem quer fazer uma Sour, à ferro e fogo, usando uma levedura Lager é simples (hereges!). Simplória eu diria. Basta incluir doses cavalares de sua fruta preferida, in natura, fazer, literalmente, uma salada mista qualquer e… voilà! Eis uma heresia cervejeira.
Temos uma Sour Lager. Afinal, para se ter uma cerveja assim, a princípio, basta que se utilize uma levedura de fermentação de baixa temperatura e que ela seja ácida e frutada ao mesmo tempo.
Como a levedura não vai ajudar, uma vez que terá tonalidades neutras, notas metálicas e um perfil limpo, por que não colocar frutas de modo aleatório e em quantidades insanas? Nada que não possa ser turbinado com uma correção no pH para que a acidez complemente esse conjunto dos horrores cervejeiros. Afinal, não basta inovar, tem que ser audacioso e quebrar as regras e padrões, não é mesmo?
Para tanto, o conjunto ainda pode ser mais bem delineado com leveduras coringas, que são Lager mas atuam em altas temperaturas… ou o inverso, como se faz nas cervejas do estilo Cold IPA, não é? Assim fica tudo ainda mais obscuro e misturado, a salada mista vai mais além dos aromas e sabores e invade também a linha de produção, em uma mega bagunça conceitual burlesca, mais contra paradigmático impossível.
Saideira
Derradeiramente, qual o resultado dessa insanidade cervejeira?
Não faço ideia. Nem pretendo.
Sour Ale já é algo que costuma me dar calafrios, e por isso passo longe. Uma Sour Lager então… não consigo sequer pensar no absurdo que ela pode ter, em aromas e sabores, dadas as suas características frontalmente contraditórias entre si.
Finalizo dizendo que, não recomendo, de maneira alguma, o consumo de algo tão antitético e contraditório assim. Seu paladar e seu bolso agradecem, pode confiar em mim.
Recomendação Musical
Se há algo estranho em se pensar em uma Sour Lager esse algo é a própria essência de uma Sour que não seja uma Ale… soa como: uma Metamorfose Ambulante, tal qual imaginado por Raul Seixas.
Fica nessa vertente a recomendação musical de hoje!
Saúde!