Você já reparou quantas tatuagens eu tenho? Pois é, nem precisa se preocupar em tentar lembrar. Porque hoje, notar esses detalhes é quase um ato heroico. Reparar de verdade virou uma raridade, como se olhar para o outro fosse uma tarefa tão complicada quanto entender as instruções de um manual técnico em mandarim. Eu olho ao redor e penso: onde foi parar o simples gesto de olhar e enxergar? Mas enxergar mesmo, sabe? Como quem olha para dentro, como quem assume que aquela pessoa do outro lado é, antes de mais nada, alguém que merece atenção, cuidado, responsabilidade afetiva.
E pensar que, antes, o “se importar” era uma coisa natural. Hoje em dia virou quase uma coisa brega. Cuidar do outro, então? Uma espécie de ofensa. Envolver-se virou sinônimo de “carência”. Parece que nos especializamos em criar um personagem meio blasé, onde ninguém pode demonstrar que se importa demais. O truque é ser o mais desinteressado possível, porque, de alguma forma, a gente se convenceu de que é assim que se ganha o jogo. Só que, cá entre nós, que jogo? Ganhar o quê? Esse troféu de quem se entrega menos?
Assumir o envolvimento virou sinônimo de abrir mão de uma parte de nós que consideramos preciosa: a liberdade de ir embora quando der vontade, de dar meia volta antes que o outro se aproxime demais. A gente diz que ninguém é de ninguém, mas, no fundo, o que está implícito é que a responsabilidade afetiva é de ninguém também. É quase um pacto invisível que fizemos para evitar qualquer laço que exija um mínimo de compromisso emocional.
Aí eu me pego pensando: o que queremos, afinal? Queremos sim que o outro note as tatuagens, os detalhes, os gestos, mas só se for rápido, sem envolver aquela coisa cafona de criar laços. É querer ser notado sem que o outro precise se dar ao trabalho de se aproximar. Queremos o carinho sem o cuidado, o toque sem o tempo, a presença sem a permanência. E nesse ritmo, a gente vai se afastando de qualquer coisa que tenha real significado.
E essa tal de responsabilidade afetiva? Ah, essa virou lenda urbana, dessas que a gente fala, mas não acredita de verdade. Falar de “sentimentos” virou quase um ato de coragem, algo que ninguém ousa fazer para não arriscar espantar o outro. Sentir virou quase um ato subversivo. Tem coisa mais estranha que isso?
Eu fico olhando para esses encontros rápidos, esses toques frios, essas conversas que não saem da superfície. Parece um manual de como se manter raso. Porque a superfície é o lugar seguro, onde a gente não corre o risco de se ver num reflexo que revela as fragilidades, os medos, as inseguranças. Mas será que não estamos perdendo algo essencial?
No fundo, parece que todos querem ser amados, mas ninguém quer o trabalho de ser alguém com quem se possa contar. Porque amar, estar ali para o outro, significa deixar o olhar parado e atento. Significa ver além da pose, da capa de autossuficiência, das pequenas tatuagens que carregamos, querendo ou não, como lembranças de tudo o que ainda somos. E isso exige tempo.
Só que o tempo, hoje em dia, é artigo de luxo. E se alguém quer algo sério, estamos sempre ocupados. Se quer algo leve, nos declaramos disponíveis, mas, claro, sem compromisso. É quase uma performance. Só que esse jogo acaba deixando todo mundo meio vazio, meio sozinho. Porque é assim que funcionam as relações que se constroem de forma rasa, sem atenção, sem afeto genuíno.
Aí eu volto à pergunta: quantas tatuagens alguém precisa ter para ser notado? Ou será que o número não importa, porque a falta de compromisso afetivo já cegou todo mundo? Porque, no fim, é isso que estamos fazendo. A gente evita, se desvia, vira o rosto, e assim seguimos. É como se estivéssemos todos a um toque de distância de sermos invisíveis uns para os outros, cada vez mais sozinhos, cada vez mais afastados do que um dia significou ter alguém realmente ao lado.
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direto no alvo!