A invenção de Moacy Cirne

moacy cirne

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Recebo com imensa alegria a notícia de que “Um Panfleto para Godard”, do grande mestre Moacy Cirne, acaba de ser lançada pela Munganga Edições. A plaquete havia sido publicada originalmente em 1986 e se colocava como um grito verbal e visual rompendo o nó na garganta contra a censura que acabava de proibir a exibição de “Eu vos saúdo, Maria”, filme do diretor francês Jean-Luc Godard.

Por essas e outras, Moacy é uma dessas pessoas que fazem falta neste mundo sem graça demais da conta.

Antes de conhecê-lo pessoalmente, tinha visto seus trabalhos e estudado sua relevância numa das cadeiras do curso de Letras. Estudávamos Moacy Cirne e seu Poema Processo entre alguns outros autores.

Depois disso, por alguma dessas estranhas encruzilhadas cibernéticas, em uma época em que a internet tinha muito menos redes sociais do que hoje, nos encontramos através dos blogs, que construíram um movimento de escrita autoral e leitura muito interessante no começo dos anos 2000.

Não me lembro exatamente se eu encontrei o “Balaio Porreta” (já em sua versão online) de Moacy ou se ele encontrou meu “O Centenário”, onde eu escrevia pequenos contos e poemas. Creio ter sido ele quem me achou, afinal Moacy era a pessoa mais ligada a todas as novidades que eu conheci. Mesmo tendo muito mais idade que eu, até então um garoto com vinte e poucos anos de idade, Moacy era um jovem, parecia um menino, inclusive na avidez pelas descobertas.

Para mim, era uma alegria e uma honra enormes ser lido frequentemente por alguém que eu admirava desde a faculdade, antes mesmo de saber que era possível conversar com o homem em lugar do autor. E honra e alegria maiores ainda estavam em ter meus textos reproduzidos ou aparecer em algumas das muitas listas que o mestre publicava em seu Balaio.

Mesmo corando um pouco, me sentindo como a coruja que gaba o próprio toco, preciso dizer que uma dessas listas de Moacy Cirne me fez sentir um escritor de verdade. Ele enumerou dez pares dos que considerava os melhores ficcionistas da literatura potiguar. Para minha surpresa, meu nome figurava ao lado de Jaime Hipólito, um de meus contistas favoritos. É curioso também que Hipólito se dissesse currais-novense, embora tenha nascido em Caicó, assim como eu sempre me disse currais-novense, mesmo tendo nascido em Natal.

Estar nessa lista foi um dos maiores prêmios que já recebi como escritor. E, entre tantas outras coisas, nunca vou ter agradecido o suficiente a Moacy por isso.

E por falar em Caicó, numa de suas viagens a essa cidade inventada por Moacy, ele fez uma parada em Currais Novos, onde Iara Carvalho, Wescley J. Gama e eu fomos encontrá-lo. Nós éramos três jovens escritores seridoenses ávidos e produtivos, prontos para mudar o mundo a partir de nosso pequeno rincão potiguar. Moacy era para nós uma espécie de esfinge, uma figura mítica e sagrada da literatura feita no Rio Grande do Norte, um conhecedor profundo das coisas. Falávamos para ele como quem pergunta a um oráculo. Ele nos respondia como quem entoa um grito de torcida numa tarde de Fla-Flu no Maracanã.

Não nos vimos mais pessoalmente depois desse encontro, ainda que trocássemos mensagens através dos blogs com muita frequência.

Com o passar dos anos, as mensagens foram rareando, o Balaio Porreta foi dando os sinais do cansaço de seu mentor, até nos levar a um longo hiato de notícias.

Foi só com sua morte, em 2014, que voltei a saber do mestre Moa. E a morte parece sempre injusta e precoce se não aproveitamos bem o tempo com quem nos deixou. É a sensação de que algumas pessoas não deveriam ter o direito de morrer. Digo isso assumindo a vergonha de todo o meu egoísmo contido em uma frase.

Por outro lado, sei que morre o homem enquanto a obra permanece. E esta reedição da plaquete de Moacy é uma prova disso. Sejamos gratos à Munganga por mais estes anos de eternidade ao mestre e suas invenções.


CRÉDITO DA FOTO: Terceiro / Agencia O Globo

Theo Alves

Theo Alves

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas cresceu em Currais Novos e é radicado em Santa Cruz, cidades do interior potiguar. Escritor e fotógrafo, publicou os livros artesanais Loa de Pedra (poesia) e A Casa Miúda (contos), além de ter participado das coletâneas Tamborete (poesia) e Triacanto: Trilogia da Dor e Outras Mazelas. Em 2009 lançou seu Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (poesia e contos); em 2015, A Máquina de Avessar os Dias (poesia), ambos pela Editora Flor do Sal. Em 2018, através da Editora Moinhos, publicou Doce Azedo Amaro (poesia).

Como fotógrafo, dedica-se em especial à fotografia documental e de rua, tendo participado de exposições que discutiam relações de trabalho e a vida em comunidades das regiões Trairi e Seridó. Também ministra aulas de fotografia digital com aparelhos celulares em projetos de extensão do IFRN, onde é servidor.

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

2 Comments

  • Theo, além de poeta originalíssimo, Moacy também era um excelente prosador. “O Livro dos Livros” é maravilhoso. Parabéns à equipe do Papo Cultura por chamarem você a compor tão honroso quadro. Acrescente-se ao legado do Moacy o fato de ter descoberto você. Abraços e sucesso.

    • Theo Alves
      Theo

      Verdade, meu querido. Moacy era brilhante. Ainda é. A prosa dele é dessas coisas que a gente lê de uma tirada só. Quanto a ter me descoberto, esse deve ter sido o grande tropeço de uma carreira kkkkk obrigado e um grande abraço!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidos do mês