Villingen-Schwenningen – Alemanha, 23 de Janeiro de 2017.
___ Meu Deus! O que está acontecendo em Natal?!?
Foi isso que Helena van Deick, irmã alemã de intercâmbio de Ana, que morou em Natal por volta de 1994, disse, ao ligar pra gente com o objetivo de acertar os detalhes de nossa viagem à Alemanha.
Já estava previsto, no meu programa de pesquisa, uma ida à terra de Heidegger e Nietzsche, meus dois objetos de estudo nesse estágio de pós doutoramento. Eu já havia inclusive acertado com o professor Bernhard Sylla (meu orientador da UMINHO) que faria uma visita à Floresta Negra, no estado de Baden-Wünttenberg no sul da Alemanha.
Acabamos descobrindo, meio que por acaso, que a Helena alemã (vou chamá-la assim para diferenciar de minha filha Helena, a brasileira) mora numa cidade chamada Villingen-Schwenningen, perto tanto de Stuttgard (terra de Hegel) quanto de Freiburg (local da faculdade em que Heidegger foi reitor durante os famigerados anos de sua adesão ao partido nazista). A cidade de Helena era estratégica para a minha viagem de pesquisa porque fica também apenas alguns quilômetros, tanto de Meßkirch, cidade onde Heidegger nasceu e onde está enterrado, quanto de Totnauberg, a montanha em que ele construiu a famosa cabana onde se refugiou do mundo durante os anos mais duros da guerra.
Mas antes de acertarmos os detalhes de nossa viagem e agradecermos a disponibilidade da Helena alemã nos receber em sua cidade, que funcionaria como um ponto de apoio para que pudéssemos viajar pelos grotões da Schwarztwald (a Floresta Negra de Heidegger) tivemos de dar notícias sobre o que estava acontecendo em Natal.
Na verdade nossa amiga alemã ficou absolutamente chocada quando viu, nos telejornais do sul da Alemanha, as imagens da rebelião no presídio de Alcaçuz, em pleno verão potiguar. Na estação em que o mar fica mais azul e que o vento leste muda o curso do tempo, fazendo os dias não apenas ficarem mais quentes e secos, mas também mais longos e lentos, distendendo-se em um horizonte quase infinito; uma onda de violência e selvageria explodiu no presídio que fica a apenas alguns quilômetros de Cotovelo, uma das praias (localizada em zona urbana) mais bonitas do Brasil.
Na verdade Helena ficou absolutamente chocada com as notícias da brutalidade do confronto entre facções criminosas, com direito a assassinatos coletivos e degolas brutais de presidiários. Desde que deixou Natal no fim de 1994 ela nunca tinha visto nenhuma notícia nas TVs alemães sobre a cidade em que viveu quando fez intercâmbio no Brasil.
Então, como que por encanto, subitamente Natal aparece no noticiário da Euronews virando assunto em Portugal, França, Espanha e Alemanha, por um motivo absolutamente brutal. Foi difícil pra Ana explicar a ela o que havia acontecido, em pouco mais de vinte anos, com aquele paraíso litorâneo que ela conheceu na primeira metade dos anos 90.
Fiquei igualmente pensativo nos dias que se seguiram ao nosso embarque pra Alemanha. O que aconteceu conosco? O que houve com a fazenda iluminada do Coronel Cascudo? Com a taba de Poty perdida no meio das dunas, entre o rio e o mar? O que havia sucedido para que aquele suposto paraíso tropical, vendido nos anos 90 e no começo dos 2000 como um oásis de tranquilidade, sal e sol, às margens do Atlântico, tenha se transformado em uma zona de conflito urbano com facções criminosas se matando nas periferias da cidade ou dentro de seu “presídio de segurança máxima”?
Se era difícil até pra mim, que vivo em Natal desde que nasci, entender isso, imaginem para nossa amiga alemã, que conheceu uma Natal que já passou e que agora, depois de tanto tempo, aparece pela TV de sua casa, em imagens cheias de violência e morte.
Aqui é importante explicar algo sobre nossa amiga Helena, que ajuda a entender um pouco a complexidade tribal da Europa. Ela é alemã, mas na verdade nasceu na Rússia, mas especificamente na União Soviética e mais especificamente ainda na Ásia, no Quirguistão, na fronteira com a China. Mesmo assim ela é alemã. Isso porque sua família descende de menonitas alemães (o mesmo povo de Kant) que habitavam a Prússia e foram viver na Rússia quando a Czarina Catarina, a Grande, no século XVIII, passou a incentivar a imigração de agricultores alemães anabatistas para trabalhar nas terras do seu imenso império. Ou seja, ela é uma russa alemã que nasceu na Ásia, viveu toda a infância num regime comunista, se mudou para Alemanha na adolescência e que morou em Natal no começo dos anos 90.
Melhor guia para nos apresentar a terra de Heidegger não poderia haver. Por isso ficamos tão animados com a chegada em Stuttgard, mesmo depois de termos aguardado quase três horas no aeroporto do Porto porque as asas do avião da companhia aérea Lasejet estavam congeladas.
Helena nos esperava no aeroporto com um carro de seis lugares que havia pedido emprestado a uma amiga. Como estávamos com poucas bagagens tudo coube bem na mala e ainda instalamos Sarah, Uriel e Helena (a brasileira) nos bancos traseiros. Demorou um pouco para chegarmos à cidade de Helena (a alemã) porque parte da estrada estava com uma camada de gelo que exigia um cuidado maior na direção.
Villigen-Schweninngen (um nome impronunciável até para mim que estudo há algum tempo a língua de Goethe) é uma “cidade dupla”, geminada, dividida em duas: “Villingen” e “Schweninngen”. Nos tempos medievais o povo das duas cidades só casava com moradores de sua localidade. Os de Villingen eram mais sofisticados e urbanos, os de Schwenningen mais rústicos e rurais. Em algum momento as cidades se uniram e passaram a ser uma única urbe, mesmo com essa separação de classe.
A cidade está completamente coberta de neve e a temperatura é de menos quinze. O local em que vamos ficar é um chalé em uma fazenda nos arredores, cercada de floresta negra por todos os lados e cortada aqui e ali por autoestradas que ligam as pequenas vilas até a zona urbana. O cenário ártico, com neve por todo canto, contrasta com a temperatura amena dentro do pequeno chalé. Na verdade sentimos menos frio aqui do que no Porto, apesar da temperatura ser bem menor. Os milhares de anos de convivência com o frio e com o branco profundo da neve fizeram com que os alemães desenvolvessem sistemas de calefação muito mais eficazes do que os portugueses (que tem só esse friozinho meia boca de dois graus negativos alguns meses do ano).
Olho pela janela do quarto para todo aquele cenário e penso comigo mesmo que não poderia ter tido mais sorte. Ao nosso redor queda um frio branco intenso e um silêncio profundo, como se a natureza tivesse suspendido a respiração, para que o inverno se instalasse. Em meio a árvores desfolhadas cobertas de neve e casas desbotadas pela névoa, vejo, da janela do quarto, brinquedos de criança espalhados no gelo e equipamentos rurais desses de fazenda deixados ao relento na imobilidade do ar congelado. Tudo parece parado, suspenso, como se vida tivesse tirado férias aguardando a chegada de uma primavera qualquer que a fizesse voltar ao trabalho.
No fim das contas a floresta negra se tingiu de branco para nos receber. Realmente… vai ser difícil explicar para nossa amiga Helena, em um cenário como esse, como o paraíso tropical que ela conheceu há vinte anos, com o calor sinuoso e sincopado do verão potiguar, que tempera as dunas de Alcaçuz; se transfigurou naquele inferno de morte e cabeças cortadas, transmitido pelos telejornais que as famílias da fria floresta negra assistem na hora do café da manhã.