ESTRELA VERMELHA
Autor: Aleksandr Bogdanov
Tradução: Paula Vaz de Almeida e Ekaterina Vólkova Américo
Editora: Boi Tempo
Ano: 2020
Páginas: 183
Um tropo bem recorrente dos filmes e livros de ficção em que ocorre nosso contato com civilizações alienígenas é a da guerra de extermínio. A noção de que uma civilização mais desenvolvida tecnologicamente (uma civilização extra terrestre que chega por aqui) representa uma ameaça existencial para uma humanidade ainda em um estágio inferior que não domina técnicas de viagens interplanetárias, é um tropo muito recorrente no imaginário das sociedades capitalistas.
As origens desse tipo de recurso literário (o do extermínio de uma civilização “inferior” por outra “superior”) sem nenhuma dúvida podem ser vinculadas ao processo de colonização patrocinado pelos europeus nas Américas, África e Ásia, entre os séculos XVI e XIX. O mito de uma civilização superior que domina civilizações menos desenvolvidas não apenas contaminou ideologicamente as explicações da historiografia ocidental para a expansão do período das chamadas “grandes navegações”, mas também impulsionou autores de ficção, tanto europeus quanto norte americanos, a imaginar que alienígenas que por ventura nos visitem farão com a humanidade aquilo que eles mesmos fizeram com os povos originários da América e com as populações da África e da Ásia.
No campo de um “realismo capitalista” é bastante raro imaginar uma história de alienígenas sem que esse movimento de submissão, controle e genocídio colonial se desenrole como um dado quase natural do contato entre culturas diferentes.
Mas há uma outra forma mais interessante de se projetar um contato interplanetário no universo da ficção científica? O livro de Aleksandr Bogdanov, Estrela Vermelha, publicado pela primeira vez em língua portuguesa em uma tradução direto do russo, pela editora Boitempo, coloca justamente essa questão.
Bogdanov, foi médico, cientista, filósofo e economista, ajudou a fundar a facção bolchevique do Partido Operário Social Democrata Russo (embrião do Partido Comunista da União Soviética). Participando ativamente da ação revolucionária na virada do século XIX e começo do século XX, Bogdanov se tornou um crítico de Lênin, que teria sido um dos primeiros leitores e comentadores de seus livros. Após sua expulsão da facção bolchevique em 1909 passou a capitanear a oposição marxista ao líder da revolução de 1917.
Estrela Vermelha foi publicado pela primeira vez em 1908, sendo considerada uma das últimas “utopias” da literatura russa, que tem um marco de origem em obras iluministas com as de Mikhail Serbátov, Viagem à terra de Ofir (1783) e de Aleksandr Radíshchev; Viagem de Petersburgo à Moscou (1790). No texto, Bogdanov constrói sua perspectiva utópica imaginando uma sociedade mais evoluída do que a nossa habitando o “planeta vermelho” (marte). Nesse sentido o texto vai além do que era a abordagem tradicional do gênero “utopia”, inaugurado no ocidente por Platão no século IV antes de Cristo. A noção de que uma utopia é uma obra eminentemente filosófica, que descreve, como uma espécie de alegoria ou de um relatório de viagem etnográfica, uma sociedade perfeita ou mais evoluída, cede lugar, na obra de Bogdanov a um cenário que também envolve elementos dramáticos e narrativos que abordam conflitos afetivos, tramas romanescos e reviravoltas amorosas.
O planeta Marte é projetado, no olhar do escritor revolucionário, como um local em que a revolução socialista havia sido vitoriosa. Raciocinando como um legítimo positivista do século XIX, Bogdanov imagina que no curso da história, o desenvolvimento das forças produtivas levaria a ciência ao patamar de uma forma superior de pensamento, superando a religião e a filosofia especulativa e criando uma sociedade justa e harmônica, nos moldes das utopias socialistas do século de Marx e Engels.
O problema é que esse desenvolvimento teria empurrado a sociedade comunista do planeta vermelho a um impasse ecológico. É muito interessante como o economista Bogdanov antecipa no seu livro a questão central de nossa época: o colapso ambiental.
Mesmo sendo socialmente mais desenvolvidos, os marcianos não conseguem impedir que os processos econômicos e tecnológicos que sustentam sua civilização produzam um esgotamento dos recursos naturais e o colapso das florestas marcianas. Esse impasse ambiental leva o povo do planeta vermelho a entrar em contato com a terra, que ainda passa pelos estágios conturbados e primitivos de seu processo de desenvolvimento capitalista e se encontra em meio a uma transição conturbada em direção ao socialismo.
Diante de sua crise, em um ambiente no qual “(…) as dificuldades são significativas em toda parte; e quanto mais estreitamente nossa humanidade cerrar fileiras para a conquista da natureza, mais estreitamente se cerram os elementos da natureza para vingar das nossas vitórias”; os marcianos se encontram diante de um dilema: como agir diante dos terráqueos capitalistas?
Lidos pelos socialistas marcianos como seres ainda em um estágio primitivo, fica claro que “(…) a arte do extermínio tem entre eles um desenvolvimento incomparavelmente superior que dos demais aspectos de sua peculiar cultura.” Isso leva ao dilema moral e político que ocupa boa parte das páginas finais do livro, em que duas teses são contrapostas no discurso dos personagens da história: socialismo ou colonização?
O debate que movimenta o planeta vermelho é se a migração inevitável de marcianos para a terra levaria necessariamente a um extermínio da humanidade e uma substituição populacional do território por colonos marcianos ou se deveria haver uma intervenção pedagógica na qual a humanidade seria objeto de um processo de reeducação socialista. O plano que, obviamente, triunfa no debate é o de acelerar o processo histórico de superação do capitalismo e de criação de condições para a revolução proletária a fim de que a humanidade da terra esteja pronta para receber o contato com a humanidade de marte.
De certa forma, sem querer cancelar Bogdanov, mas já antecipando uma crítica decolonial, as duas perspectivas parecem reproduzir as duas formas de imperialismo contemporâneo, que estão bem presentes no eurocentrismo do século XIX: a dos “falcões” (com domínio militar e genocídio) e a das “pombas” (com o chamado imperialismo humanitário e o soft power ideológico).
O fato é que o livro, ao ser lançado em 1908, gerou bastante controvérsia no interior dos círculos intelectuais revolucionários fazendo com que o texto circulasse bastante, gerando várias edições, publicadas entre 1909 e 1929.
Na década de 1930, durante o período da contra revolução conservadora de Stálin e da reabilitação de Pushikin como grande expoente da literatura russa (perdoem o deslize trotskista), a obra de Bogdanov praticamente caiu no esquecimento, não sem antes sofrer várias mutilações, com trechos sendo suprimidos pela censura soviética; especialmente os trechos que apresentavam discussões sobre homossexualidade, questões de gênero e sobre o amor livre, que eram bem intensas no início da revolução, mas não atendiam ao conservadorismo moral do realismo socialista do período stalinista.
O texto, reeditado na União Soviética em seu formato original na década de 1970, que serviu de base para a edição brasileira da Boitempo, traz esses parágrafos censurados nas edições dos anos de 1930.
Nesses tempos de distopias pós apocalípticas em que é mais fácil imaginar o fim da humanidade do que uma revoluçãozinha comunista qualquer que derrube o modo capitalista de produção, o livro de Bogdanov é uma boa pedida. Afinal, é necessário aqui e acolá uma certa dose de utopia para atravessar o deserto do real, que parece que cresce a cada dia e nos engole sem muita cerimônia nesses nossos tempos tão conturbados.