por Marcius Cortez
Se vivo fosse, Stanley Kubrick completaria 89 anos no próximo dia 26 de julho. Me ocorreu uma pergunta inocente: como seria a festa? Teríamos um bolo com velinhas? Qual seria a reação do aniversariante? Arriscando uma resposta, o furioso diretor de “Laranja Mecânica” não teria mudado muito. Certamente a família iria comemorar a data. Christiane, sua mulher e Jan Harlan, seu cunhado, estariam entre as pessoas que bateriam palmas e engrossariam o coro do parabéns a você. Ela é pintora e ele, além de produtor executivo de “Barry Lyndon” e de “O Iluminado”, sabe tudo de música.
Na primeira vez que veio ao Brasil, ouvi Jan fazendo um elogio a determinado compositor. A maneira que introduziu o nome do músico foi muito interessante. Ele começou nos contando que o seu avô paterno era português e delicadamente, nos pediu desculpas por não falar “brasileiro”. Em seguida, encheu a boca antes de pronunciar corretamente o nome de Heitor Villa-Lobos. Recordo que fez um breve silêncio e disparou: “Parece que vocês não dão muita importância a ele, aqui no Brasil…”
Apesar dessa “falha técnica”, o alemão gostou da terrinha. Em 2012 palestrou na Fundação Álvares Penteado e já no ano seguinte, desembarcou em São Paulo. Óbvio que eu, o solerte repórter, me pus a esperar a hora de dar o bote.
Solicitadíssimo, Jan Harlan formava com Christiane, a dupla de convidados especiais da Exposição Stanley Kubrick inaugurada em outubro e encerrada em janeiro de 2014 no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS).
Pois bem, súbito, vi o cunhado de Kubrick andando sozinho no meio das pessoas. Ora tratei de apressar o passo, colei nele, pedi licença e indaguei se ele aceitava um texto onde eu resumira o conteúdo do livro que escrevera sobre a obra de seu cunhado. Jan perguntou se estava em inglês, falei que sim e, pasmem, ele parou e se ateve ao texto. Comentou que achou interessante, deu uma risada quando leu o título, perguntou quando o livro ia ser publicado, o nome da editora, enfim, até hoje acho que tudo aquilo não passou de um filme. Jan enfiou o papel no bolso e seguimos papeando quando nada mais nada menos surgiu a senhora Kubrick.
O alemão era mesmo gente finíssima, pois virou-se para a irmã e nos apresentou: “Este senhor é um escritor brasileiro que vai publicar um livro sobre a obra do Stanley”. Num momento de pura espontaneidade, saiu uma coisa da minha boca que estufou as redes. Murmurei: “You are beautiful, so beautiful, Christiane”. Os gringos riram, mas riram pra valer. Logo sacaram que não se tratava de um gracejo ou de uma tirada típica de um latin lover. Na verdade, ficamos muito emocionados, três tímidos, compartilhando um instante de descontração e de paixão declarada pelo cinema primoroso do mestre K. Puta que o pariu, evidente que uma pessoa que viveu quarenta e dois anos ao lado do gênio só pode ser linda, muito linda.
E assim ficamos conversados. Christiane vive em Londres, ela é quatro anos mais moça do que o marido. Com a dupla Christiane/Jan, eu aprendi que o cinema de Kubrick é governado pelas emoções e não pela inteligência ou erudição. Eles me disseram que Stanley não conhecia a palavra “descansar”. Seu método de trabalho era o esgotamento sustentado por uma regra elementar: sempre ver o que filmava. Baseado nesse critério, tudo podia acontecer. O valor maior de sua obra é a mente aberta.
Nenhum outro diretor de cinema foi capaz de nos legar uma filmografia tão surpreendente quanto a do vendedor de balões, apelido dado por Christiane. A arte de Kubrick é como se estivesse sempre por fazer. Sua ausência nos empobreceu. Esse radioso cometa desapareceu antes do ano 2001. Ele foi enterrado perto de sua árvore preferida no seu sítio em Childwickbury, St.Albans, Inglaterra, na tarde de 12 de março de 1999.
Muitos cineastas morrem e se apagam. Outros não. Outros resistem, protagonizando uma atualidade que tem a ver com o nascimento diário da arte e da beleza.
No aniversário da fera, em 2014, sua filha, Vivian Vanessa Kubrick, tuitou um torpedo: “Eu acho que no dia de seu aniversário, papai me disse que está nesse vasto universo. Na terra de novo? 15 anos de idade? Huuuumm!”
Não acredito na cientologia, como é o caso da caçulinha do autor de “2001, uma Odisseia no Espaço”. Mas resolvi abrir uma exceção. Descobri o endereço de Vivian em Los Angeles e um dia vou bater na casa dela, levando debaixo do braço um maço de flores para meu monstro favorito.