Buenos Aires – Argentina, 07 de Fevereiro de 2016
Por Pablo Capistrano
Hoje é meu aniversário de 42 anos.
Levando em conta que a vida bem pode ser uma partida de futebol jogada contra a morte, estou me aproximando do segundo tempo.
De um modo geral, mesmo não sendo especialista em alguma avaliação fisiológica de atletas de alto rendimento existencial, posso afirmar, sem muito medo de errar, que ainda tenho uma boa condição de jogo, apesar do ganho de peso dessas décadas, das taxas de triglicérides alteradas e de um peculiar refluxo que me ataca vez ou outra quando exagero no café, na cerveja ou no vinho (como ontem).
Apesar da dureza da partida que venho jogando esses anos todos contra a morte, acordei hoje energizado para comemorar, pela primeira vez longe do Brasil, minha revolução solar.
Afinal, ontem pegamos um metrô e fomos até a Plazza Itália, em Palermo e de lá caminhamos para um zoológico. A ideia era que as crianças pudessem ter um programa mais adequado para a idade delas. Arrumar uma coisa para entreter crianças em viagens é sempre providencial porque senão elas ficam entediadas e começam a perturbar o juízo dos viajantes.
O fato é que eu não imaginava que ficar tão perto de um grande tigre siberiano ou de um rinoceronte africano fosse uma experiência tão desconcertante. Mesmo estando separados de nós por grades e vidros reforçados é possível sentir toda a potência crua e não apaziguada da vida ao acompanharmos o movimento desses animais que não se submeteram à armadilha de nossa domesticação racional.
Eu, particularmente, quando vou a lugares desse tipo, gosto de ver os macacos. Eles me parecem espelhos, parentes distantes, inquietantemente semelhantes a nós mesmos; criaturas que andam na fronteira, na borda que separa a velha imersão na massa natural, de toda essa parafernália de cultura que criamos para amaciar em nós a energia bruta da vida.
Não é por acaso, amigo velho, que o dispositivo técnico dessa bolha antropomórfica em que habitamos está matando os animais que não se submetem ao nosso domínio. Eles serão todos destruídos se a civilização da técnica não ruir primeiro e afundar conosco, deixando alguma zona abissal aberta para que a energia indomável da terra, metamorfoseada na matéria biológica que compõe nossos corpos, possa voltar a prosperar.
Pelo menos, no zoológico de Palermo, conseguimos reter alguns resíduos desse mundo desconhecido e ameaçado, como guardávamos, no século passado, antigas coleções de selos em álbuns empoeirados.
Mas eu não sou desses que chora um luto antecipado por um mundo natural que talvez nunca tenha sido o nosso. Não abro mão do conforto da cultura, por mais que Nietzsche e Freud me alertem de seus riscos. Na verdade eu costumo encontrar nas expressões antropomórficas, vez ou outra, a mesma energia brutal e vital que vi ontem, no andar ondulante daquele tigre siberiano atrás do vidro no zoológico de Palermo.
Como por exemplo hoje, nesse 07 de Fevereiro de carnaval, em que só o que se fala na TV é do show do Rolling Stones que vai acontecer à noite aqui na cidade. Parece que há uma certa obsessão portenha com o rock. Uma obsessão que se manifesta, ao menos nas ruas de Palermo e da Recoleta, em uma profusão de transeuntes com camisas pretas de banda. Na terra de Charlie Garcia e Gustavo Cerati, o rock me pareceu fazer mais parte do espírito da cidade do que o tango (que me lembrou mais um artefato museológico para turistas do que uma trilha sonora para a Buenos Aires da segunda década do século XXI).
Nós, no Brasil, nos acostumamos a ficar de costas para a América que fala espanhol. Sempre voltados para os EUA e a Europa, não temos notícia da tradição do rock latino. No Brasil, bandas como Almendra, Sui Generis, Serù Girán e Soda Stereo podem até ter seus nomes mapeados pelos ouvintes enciclopédicos de rock, mas o público, em geral, desconhece quase que completamente a qualidade do som feito do lado de cá da fronteira.
Percebi que existem muitos cafés, sanduicherias e cervejarias por Palermo e pela Recoleta onde o rock é uma espécie de “ícone de mercado”. Não falo só da música que se escuta nos ambientes, mas também da decoração, dos cardápios, das imagens de publicidade, das marcas sonoras que traduzem os ruídos dessa parte da capital.
Do tal do tango só vi referências um pouco mais autênticas (fora dos pacotes pra turistas) quando fomos agora a tarde em San Telmo e paramos para almoçar em um restaurante que me lembrou algum dos prédios da Ribeira que costumava a frequentar com meu pai na infância, nas manhãs de Sábado, após a passada obrigatória na livraria Universitária, no Sebo Cata Livros e no bar de Nazi, no beco da lama.
No restaurante de San Telmo, localizado no térreo de um prédio que parecia dos anos 40 ou 50, ouvi Carlos Gardel, curiosamente posto como trilha sonora do ambiente, sobreposto a imagens que desfilavam em um telão mudo em que se exibiam clipes dos Ramones, Red Hot Chilli Peppers e David Bowie. Uma superposição curiosíssima que parecia jogar lado a lado duas experiências estéticas tão dispares, mas ao mesmo tempo tão autenticamente argentinas. Mesmo que o rock tenha sido inventado nos EUA e aprimorado pelos “inimigos” (las malvinas son argentinas!) ingleses, parece que os argentinos o adotaram como música de estimação, assim como fizeram com o futebol.
Ali, pelas ruas de San Telmo, dava pra ter uma visão mais clara da grande variedade de estilos e de marcas sonoras dessa metrópole de beira de rio; tudo isso envelopado em uma ampla “gordura estética” que preenchia as artérias acústicas da capital. Pelo meio de um mercado das pulgas, que ficava rua do bairro histórico, fechada aos Domingos para que a população pudesse vender todo tipo de antiguidades, obras de arte, livros, peças de artesanato, velhas fotografias de Buenos Aires e até fitas k7 com os clássicos do rock argentino, tudo exposto em barraquinhas pelo passeio público; ouvi sons de bandinhas de Jazz, de música folclórica dos pampas (que me lembrou muito a música gaúcha da fronteira) e até canções andinas, executadas pelo que pareciam ser aqueles grupos de bolivianos que vez ou outra apareciam pela rua central de Pipa na virada do milênio.
Ao terminar o almoço, seguindo esse rastro gorduroso de ruídos da cidade, com a voz de Charlie García na cabeça cantando La grasa de las capitales (do álbum homônimo de 1979 do Serù Girán), fui até Puerto Madeiro, uma espécie de “orla marítima sem praia” dos portenhos.
Na verdade o espaço é um grande calçadão margeando uma reserva ecológica que fica na beira do Rio da Prata e que parecia estar dividida em zonas onde grupos diferentes de pessoas se reúnem junto a quiosques e food trucks para comer, beber, dançar e ouvir música.
Numa dessas zonas, um grupo de pessoas da idade da minha mãe (que mesmo com 70 anos não arreda o pé de percorrer a cidade com a gente), dançava algo que me pareceu uma espécie de cumbia (ou algum equivalente argentino de nosso forró). Em outra zona, um pouco mais adiante, uma multidão de gente, cada uma com uma bicicleta estilizada mais estranha do que a outra, muitas adaptadas com capas e com autofalantes no bagageiro (numa espécie de “paredão” ciclístico), zanzavam pra lá e pra cá tocando Rap, Hip Hop e música eletrônica.
Curioso foi ver, perto do que parecia o fim da zona de quiosques, um grupo de garotas com shorts curtíssimos e de rapazes sem camisa, fazendo uma coreografia grupal meio improvisada, embalados por uma trilha sonora que parecia uma mistura de axé com funk carioca. As “chicas”, branquinhas, branquinhas e de olhos claros, chacoalhavam os quadris e balançavam os braços em um misto de ginástica com dança contemporânea; o que dava ao espetáculo uma tonalidade estranhamente pós-moderna (se é que isso não é uma redundância).
Voltei para o hotel no começo da noite, já sem lembrança da energia que havia roubado ontem daquele tigre siberiano no zoológico de Palermo, como se tivesse sido sugado pelo redemoinho sonoro dessa capital que me pareceu, como a própria vida parece ser, uma encruzilhada de todos esses tempos que nos atravessam, nessa era em que o ontem, o hoje e o amanhã parecem se fundir em um balé de culturas e identidades.
Esse aniversário me fez pensar em Buenos Aires como um lugar que ilumina com a mesma falta de cerimônia com que embriaga e, antes de apagar a luz do abajur para mergulhar na escuridão da inconsciência, embalado pelo vinho portenho, lembrei que existir é, antes de mais nada, lutar em terra estrangeira (como escreveu o imperador Marco Aurélio) e que cada ano que a gente comemora na terra é também menos um ano que teremos para usufruir na trilha oculta do destino que nos guia, impassível, em direção ao mistério.