Estranha forma de vida: O western colorido de Almodóvar

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Os versos de lamento do fado de Amália Rodrigues informam de antemão os conflitos internos de dois homens que se amam, mas se comportam de maneiras opostas, no curta Estranha forma de vida (Strange Way of Life, Espanha, 2023), novo trabalho do cineasta Pedro Almodóvar.

Almodóvar levou seu colorido habitual ao western, agora moldado pela grife Saint Laurent (o grande patrocinador do projeto), para contar a história de dois ex-pistoleiros, Jake (Ethan Hawke) e Silva (Pedro Pascal), que 25 anos depois de um tórrido e curto relacionamento, voltam a se encontrar em posições distintas da lei; enquanto Jake é um xerife, Silva é um caubói cujo filho cometeu assassinato.

A iniciativa do reencontro parte de Silva, que cruza o deserto cheio de saudade por Jake, mas se depara com um homem cauteloso, que procura esconder seus sentimentos sob o manto da moralidade, da lei e da ordem.

As cores que Almodóvar faz seus protagonistas usarem, revelam as intenções ocultas de cada um. Silva ostenta um vistoso casaco verde, enquanto Jake usa terno preto. Por baixo do casaco de Silva há uma camisa xadrez, em tons terrosos de vermelho e marrom. Já o colete de Jake é de um elegante vermelho bordô.

Jake convida Silva para jantar em sua casa, mas eles só tiram o terno e o casaco após a refeição, revelando os tons diferentes de vermelho sob eles. A troca de olhares à mesa, juntamente com os diálogos (Silva mais efusivo, Jake, contido), indicava algo mal resolvido entre os velhos amigos, mas, com os vermelhos à mostra, a paixão contida explode e uma noite de amor acontece (notar que as cortinas do quarto também são vermelhas).

Pela manhã, Jake volta ao seu comportamento frio e racional, usando camisa e terno azuis. Isso confunde Silva, que esperava ter seu amor em seus braços para compartilhar a vida com ele, principalmente ao encontrar seu antigo cachecol vermelho numa das gavetas de Jake (uma alusão a O Segredo de Brokeback Mountain?). Aqui, Jake expõe a dúvida sentida e o porquê do seu distanciamento: terá Silva regressado em nome do amor ou para tentar encobrir o crime do seu filho Joe (George Steane)?

Segundo o livro If It´s purple, someone´s gonna die: the power of the color in visual storytelling, da Patti Bellantoni, o verde é a cor da personalidade dividida e está associado à ironia, além de expressar vitalidade e perigo. Por isso, o casaco verde de Silva sustenta a dúvida de Jake. Além disso, no quarto de Jake também vemos duas poltronas, uma com estofado verde e outra com estofado vermelho. A dualidade e a contradição dão o tom do curta.

Nas cenas de flashback, as cores usadas pelos jovens e selvagens Jake (Jason Fernández) e Silva (José Condessa) também nos informam algo sob suas personalidades. Silva veste camisa marrom e está com o cachecol vermelho amarrado ao pescoço, indicando ser passional, enquanto Jake veste camisa quadriculada em azul e cachecol azul, o que denota introspeção e alguém que segue mais a razão. Tanto que quando eles acertam o odre e se lambuzam de vinho, junto com as prostitutas, é Silva quem tem a iniciativa de agarrar e beijar Jake. Porém, no presente, Jake diz ter sido induzido pelo vinho, tanto que deixou de beber (mas como um relacionamento de dois meses pode ser “culpa” do vinho, hein, Jake?).

Outra sacada boa de Almodóvar para trabalhar a dualidade foi fazer seus protagonistas brincarem de gato e rato, quando partem em busca de Joe. Jake segue os rastros de Silva, que está voltando ao seu rancho para alertar o filho e ajudá-lo a fugir, haja vista Jake não ter caído em sua lábia. Então, enquanto Silva mentiu para Jake sobre seu regresso, Jake é sincero e pela primeira vez demonstra sentimento por Silva ao dizer que está ali apenas por causa de Joe (o olhar de Jake muda, demonstrando carinho e preocupação). Como Silva é pai, ele sabe que em primeiro lugar deve proteger seu filho, mesmo que para isso precise ferir o amado.

Silva, o grande enamorado manipulador, afirma que ninguém pode fugir do destino. Ele cuida de Jake ferido e ironicamente consegue, nem que por um breve período, realizar o sonho de dividir o rancho com o amor da sua vida (a camisa quadriculada num tom amarelo-mostarda, usada agora por Silva, evoca um aspecto idílico, reforçando a sua ação).

Mas há uma cor unindo ambos, o charmoso grisalho dos cabelos de Ethan Hawke e Pedro Pascal, que eles emprestam acertadamente aos personagens, tornando o colorido do curta ainda melhor.

Milena Azevedo

Milena Azevedo

Mestre em História (Unisinos/RS), já foi professora e empresária, e desde 2005 milita no campo das histórias em quadrinhos. Atualmente segue como diagramadora, letrista e roteirista de HQs e games, com trabalhos publicados em coletâneas locais, nacionais e em Portugal e Angola, finalistas do Troféu HQ Mix, do Troféu Angelo Agostini e da categoria Quadrinho Alternativo do Festival de Angoulême (França), entre eles: Visualizando Citações - vols. 1 e 2, Fronteira Livre, Máquina Zero - vol.2, Imaginários em Quadrinhos - vol. 4, Haole (webcomic), Amor em Quadrinhos, Penpengusa, Contos Urbanos e Café Espacial #19. Vencedora do Troféu Angelo Agostini de 2019 (Melhor Lançamento) e dos HQ Mix de 2019 e 2020 (Melhor Publicação Mix e Melhor Publicação Aventura/Terror/Fantasia) com Gibi de Menininha 1 e 2. Em 2022, roteirizou as HQs “Oscar e o Pan de 87” e “Viúva Veneno”, ambas publicadas pela editora Ultimato de Bacon. Também criou a webtira Aprendiz de Bruxa, em parceria com Ju Loyola, e atualmente a parceria segue com a desenhista Mari Santtos. Em 2018, fez sua estreia na literatura infantojuvenil com o livro Dara, Dora e as estrelas, escrito a quatro mãos com Glacia Marillac.

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