por Cícero Cunha Bezerra
O título deste pequeno artigo, que bem poderia ser uma evocação grega ao destino (moira) de um herói morto em campo de batalha, é uma frase inicial de um poema intitulado Elegias para Ana Carolina que abre a Obra poética de Myriam Coeli (Sol Negro, 2018).
Nascida em Manaus (1926), Myriam Coeli foi transladada, aos dois meses de idade, para a cidade de São José de Mipibu no Rio Grande do Norte e teve uma vida marcada pela paixão à escrita. Sua veia poética se manifestou aos oito anos de idade com referências literárias e filosóficas que vão desde Machado de Assis a pensadores greco-romanos. Filósofos, naus, ventos que a levaram a Recife cidade onde recebe o título de licenciada em Letras neolatinas em 1950 e à Madrid, onde se forma em jornalismo, atividade que já exercia na cidade de Natal rompendo, na ocasião, com o espaço hegemônico restrito a homens.
É na Espanha que Myriam tomará contato com a poesia de Lorca, conhecerá Salvador Dali e vivenciará a vida cultural madrilenha. Não resta dúvida, ao lermos seus poemas, das influências da poesia trovadoresca e mística espanholas como são os casos da série Cantigas de amigo (1980) e Poema à Garcia Lorca do Rio Cigano (1982). Mas não se trata de reduzir a poesia de Myriam a uma ou outra influência. Sua verve poética transita por paragens múltiplas. Dividida em seis blocos de poemas (Imagens virtual (1961), Vivência sobre vivências (1980), Cantigas de amigo (1980), Inventário (1982) e Ave Myriam (1984)), sua poesia completa nos conduz por um exercício de criação digno somente de quem faz do verbo carne.
A morte, o silêncio, a noite, o fogo como mistério heraclítico pulsante; a terra, nascida do abismo e destino “sensualmente vivo”; a água, em seu fluir, refluir e diluir, verbos liquefeitos pelo Espírito que se dá em cotidiano humilde; o ar, “lâmina brilhante de transparente sons” e “redemoinhos de carícias” e o tempo, solo de plantio de “vento e evento”, de “tempestade e senso”, figuram como princípios (arkhaí) de um mundo infinito presentificado em palavras talhadas por mãos artesãs.
Quando leio os poemas de Myriam Coeli não consigo me desvencilhar do tom abissal e paradoxal de uma compreensão da vida em que a trágica experiência da finitude sofocliana, que concebe o homem como sombra (skiá), se eleva em dádiva e nascimento. A presença de um Deus/Espírito entendido como “inquietação e luta”, funda uma experiência poética em que elementos bíblicos convergem para uma concepção de sagrado que assume a existência como “mistério de ser”. Versos tidos como dardos certeiros em peitos de um homem velho e que exige novo nascimento:
(…)
Para quem meu canto existe:
em plano exposto,
cuspido no rosto,
desnudo e triste,
amargo e só
na multidão;
o que se exibe
em técnicas crucificado,
de cotidianas frustações
asfixiado.
Poluído alvo.
Um novo Cristo
Assalariado
Padecendo mortes
Por coisas vivas.
(…)
(COELI, 2018, p. 77).
Em Cantiguinha Repetitiva para as Mungubeiras do Tirol, poema dedicado a Zila Mamede, é possível sentir, o ar de alguns textos da tradição mística, que tem em Eckhart e Angelus Silesius exemplos mais próximos de um brotar “sem por quê”. Após um longo indagar pelas razões e finalidades das Mungubeiras tecerem suas flores e fiarem seus tecidos roxos espalhado pelo chão, resta uma conclusão: “Mungubeira tece”. (COELI, 2018, p.87) o resto é criação poética que habita à palavra.
Da terra ao céu, do céu ao lixo encarnado nos corpos de catadores do bairro de Cidade Nova. Transubstanciação de corpos consumidos nos resíduos e imundície dos edifícios:
(,,,)
Nos edifícios
que se colete
muito mais lixo;
e na cidade
se multiplique
mais imundície:
para o sustento
de nossos filhos
que nessa escola
caráter formam
entre detritos.
(…)
(COELI, 2018, p 91)
Poema em forma de oração, de súplica por parte dos que sobrevivem dos “petiscos” jogados no fértil lixo, no “lixo irmão”. Ofício de quem tem na miséria o alento e o sonho. Neste caso específico, o verbo não falsifica, explica. Dura realidade que pode ser contraposta à fuga para outros astros no poema O invento. Da dor humana à marav(ilha) de uma máquina brilhante na noite escura:
(…)
Estranha maravilha
Que o homem cria
Do duro ventre
Da (má) quina fria.
(COELI, 2018, p.113)
As suas preocupações sociais figuram, também, no Livro do povo ao denunciar o ciclo necrótico de um contexto em que a fome, como “chaga triste”, mantém o ciclo vicioso da miséria de quem já nasce condenado à morte. Com A mesa, Myriam expressa toda a dor dos que enganam a fome com farinha e mãos cansadas e conclui, em Fome, com uma bela descrição para um fenômeno tão execrável: “é falta entre a boca e o estômago” (COELI, 2018, p.28).
Do lirismo ao realismo, da física à metafísica, a poesia de Myriam Coeli é desafio a um mergulho em uma obra tecida pela paixão e pelo domínio da linguagem poética que tornam sua escrita uma ode à palavra:
Palavra é abismo, é infinito.
É lirismo e é blasfêmia.
É amor e vômito.
É fel e a fez.
Há quarenta anos, no dia 21 de fevereiro de 1982, o corpo de Myriam Coeli se fez terra e se juntou aos fluxos de origem. Sua memória, no entanto, é sangue que se faz vida nas tensões entre branco e nanquim; entre o dito e o inaudito, na eclosão de uma vida que é canto, toada e ode ao mistério que só a poesia, em sua força avassaladora, consegue tocar com palavras in-certas.
- Cicero Cunha Bezerra é professor do Departamento de Filosofia da UFS/CNPq.