É possível que a modernidade tenha batido à minha porta naquele dia. Fui levado, com centenas de outras crianças, para tomar vacina contra uma epidemia de meningite que matava a torto e a direito, ricos e pobres, nordestinos e sulistas, debaixo das barbas da ditadura brasileira mais recente, aquela que acabou formalmente em 1985 e hoje dá seus arrotos retrospectivos. Mas não quero me desviar do assunto: a questão aqui era o sopro de uma modernidade entrevista e, claro, precariamente decodificada. Pudera, eu devia ter uns 8 para 9 anos. Não mais. Levados pelas mães em massa, tomamos algum transporte coletivo que nos deslocou de Parelhas para Jardim do Seridó, cidade vizinha – da qual a primeira fora “colônia” antes da emancipação milênios atrás.
Em Jardim, fomos colocados, mães e filhos empertigados como convinha nos tempos da ditadura, em filas gigantescas, cobras humanas que se espichavam por uma rua surpreendentemente larga que nem parecia combinar com aquela cidade ainda menor que a minha – e isso era notável mesmo o leitor levando em conta o fato de minha tenra idade não permitir comparações mais aquilatáveis em termos de urbanismo. Para completar a ambientação algo futurista, além da largura da rua, da imensidade de pessoas a lembrar cenas de um clássico do cinema mudo, havia a aparência high tech da vacina, que inoculava sua substância preventiva em nossos cambitos braçais como se fosse não uma injeção que hoje nos previne da Covid, mas uma espécie de pistola imunizatória capaz de, agora, convencer até o Bozo a se deixar inocular.
Todos esses elementos juntos – o medo de uma epidemia, as avenidas largas de uma cidade até menor do que aquela em que eu vivia, as filas dignas de fitas de cinema e finalmente a vacina empacotada em uma pistola que emulava as armas de Flash Gordon – entregaram-me de bandeja, bem cedo, a ideia de modernidade, e modernidade urbana. Ficou patente ali para mim, embora eu fosse evidentemente incapaz de formular isso em palavras, que Jardim era, de alguma maneira, profundamente diferente de Parelhas, Acari, Currais Novos e até da metropolitana Caicó – ah, Caicó! Eu não conhecia o conceito em si, mas sabia que Jardim era muito moderna, sim, senhor.
Isso era uma sensação, não algo decodificável em impressão estabelecida e defensável nas conversas durante o recreio nos dias seguintes no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Mas ficou – indelével, tão silenciosa quanto certeira, em algum recanto da minha mente. Aqueles territórios da infância que, na vida adulta já após os 50 anos, dia sim dia não você se flagra reacessando motivado por algum link inesperado com algo que lhe passou pela vista na rua ou caiu-lhe às mãos em forma de livro, por exemplo.
No meu caso, foi essa segunda possibilidade o que ocorreu. Cheguei por meio de uma amiga comum a este “Modernizando os sertões: Jardim do Seridó, a “Veneza seridoense’”, tese acadêmica de Diego Marinho de Gois que o autor em boa hora soube transformar em livro acessível a todos que têm apreço pelo tema das cidades, suas organizações, feições e formas de convívio que constroem ou representam. Morando em Brasília, um marco absoluto das experiências de urbanização feitas no país, o tema não poderia me ser menos caro. Mas gosto dele naturalmente, já o apreciava. O que me surpreendeu ao descobrir este livro foi o transportar da ideia de revolução urbanística para uma pequena cidade do sertão brasileiro, especialmente no Nordeste sempre apressadamente visto como arcaico.
Diego, um jardinense de boa cepa que hoje reside no Paraná, mas não perde de vista as movimentações que marcaram sua cidade de origem, nos explica como um intendente (leia-se, na linguagem atual, prefeito) conseguiu levar a cabo uma série de mudanças que iam desde o alargamento de ruas até o arejamento puro e simples de um açougue, entre várias outras ideias inesperadas a partir do ano de 1917, fazendo de Jardim do Seridó um estandarte vivo de ideias urbanas que, se alteraram para melhor a face do Recife onde este intendente estudou, também poderiam muito bem ser levadas interior adentro. E assim foi feito.
Para além de qualquer tecnicalidade sobre a reorganização do espaço – que o livro nem cultiva exageradamente, não precisa – há ainda um belo arcabouço narrativo que explora, mais do que as obras em si, a qualidade humana das figuras que levaram adiante tais ajustamentos. Heráclio Pires, o intendente, era também o farmacêutico municipal e o dono do jornal local, este também um elemento singular a sustentar a saga da nova Jardim e a recuperação dela mesma na pesquisa de Diego. Enterrado na memória do Seridó há tanto tempo, Heráclio ressurge nas páginas do livro como um JK jardinense, fazendo em 13 anos transformações que nas mãos de outro nem sairiam do lugar ou levariam os tais 50 anos para manter a comparação com o ex-presidente. Ele se alista no batalhão reformador dos tais médicos higienistas que na República Velha tentaram ventilar os pulmões cansados do Brasil de então.
O jornal de onde Diego retirou grande parte dos registros traz outra personalidade, esta situada mais no território da ambiguidade literária: o impetuoso e piadista Caetano Zacarias, autor de crônicas ali publicada em que faz o contraponto das inovações defendidas e implantadas por Heráclio. A cada nova ideia, Caetano reage com um chiste inesperado. Um novo plano de mudanças é anunciado e Caetano já tem prontos os causos que mostram como a ideia causa reboliço entre o povaréu. Fica a séria desconfiança de que Caetano, com sua verve popular e seu carisma de papel, pode ter sido o próprio Heráclio sob pseudônimo numa estratégia de angariar adesão aos seus projetos usando a isca da falsa reclamação. Estabelecia a polêmica de rua e com isso dava visibilidade aos argumentos da intendência. De qualquer maneira, as colunas do dito Caetano são cartas enviadas de algum lugar que conferem, com humor sertanejo e aquele ceticismo interiorano tão teimoso quanto divertido, um arremate no plano da escrita ao que no estágio da engenharia pura não teria a poesia que tais reformas também, e por que não, contêm.
“Modernizando os sertões” conta essa história, dessas mudanças urbanas – e rurais também, não esqueçamos a abertura de estradas de rodagens em substituição a velhas trilhas, cujas consequências para a qualidade da vida no município são igualmente revolucionárias – feitas entre 1917 (olhe o ano!) e 1930, quando outra revolução jogou Heráclio na vala comum dos inimigos do novo regime – logo ele, tão livre de convenções do seu tempo à sua maneira – e encerrou a gestão dos anos dourados de Jardim.
Somente agora em agosto, ao ler este livro que encomendei direto ao autor (
di**********@ya***.br
ou @dieguitogois no instagram), construí minha ponte particular ligando o prazer dessa leitura à memória daquele distante dia de vacinação. Com essa ligação, pude enfim demarcar, como se estivesse cravando uma estaca simbólica no chão da consciência, o dia exato em que a modernidade – seja lá o que for este conceito fugidio como uma lembrança recuperada de surpresa – colocou os dois pés dentro da minha besta vida.
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1 Comment
Tião Vicente, parabéns pelo artigo. Sou um filho de um seridoense que veio para a grande São Paulo e aqui viveu boa parte da sua vida. Retornou à sua Veneza e atualmente vive nela, com 88 anos. Eu, que só estive em Jardim do Seridó com 6 anos de idade, hoje estou aqui tentando “experimentar” a vida dele na infância, desde o nascimento em 1934. Nesse embalo tento deixar registrada num livro a sua história, bem como a vida no sertão. O livro citado já me foi objeto de leitura e também gostei muito. Grande abraço!