A PROSOPOPEIA DE MIGUEL LEANDRO
Num dos capítulos do meu livro “O Caçador de Jandaíras” conto anedota sobre o escrivão Miguel Leandro, figura tradicional da Natal de ontem, célebre pelo rebuscado da própria linguagem.
Veraneando na Redinha, Miguel Leandro precisou alugar um barco para fazer a travessia do rio Potengi, do Cais Tavares de Lyra até aquela praia. Chegou perto de um barqueiro preto retinto, e disse:
– Olá, da Costa d’África! Quanto queres de remuneração pecuniária para me transportar deste polo àquele hemisfério?
O barqueiro:
– O quê Seu Miguelzinho, tá querendo que eu leve vosmecê pro cemitério?
– Se o dizes por ignorância crassa, transit. Mas, se ousas zombar da minha alta prosopopéia, dar-te-ei uma cajadada no alto da sinagoga, deixando-te rente ao solo pátrio!
Tal anedota – constatei há pouco – é uma versão de um episódio muito antigo e que tem como protagonista o famoso tribuno Lopes Trovão (1844-1925), abolicionista e republicano histórico.
Vários outros causos, envolvendo Miguel Leandro, também não passam de invenções de uma gente simples e inculta, como era grande parte da população de Natal, naquela época.
Conta-se que, certa feita, Miguel Leandro presenciou o esmagamento de um cachorro sob a rodas de um automóvel. Quando lhe perguntaram o que fora aquilo, ele disse:
– Um canicídio provocado pelas rodas borrachinosas de um veículo em disparada.
E depois, em plena noite de São João, referia-se ao “ribombar pirotécnico das bombas acrobatas”.
A escritora Nati Cortez, em seu livro “Jornal da Saudade”, reportando-se a alguns personagens da Natal do seu tempo, diz que o escrivão tinha um palavreado fora do comum, e dá uma amostra:
– Olá, meu filho Crispim, ergue-te do leito paternal e vai ao mercado. Lá comprarás uma massa côncava e convexa a que os imbecis deram o nome de cuscuz.
Meu pai gostava demais das histórias do escrivão, e me dizia que ele era uma grande figura humana.
OS FÍGADOS DA VIÚVA MACHADO
Quando eu era menino, vivente da Serra de Martins, no interior do Estado, já ouvia falar da Viúva Machado. Dizia-se que, em Natal, onde morava, ela costumava comer o fígado de crianças para curar-se de uma doença rara.
Me assustava:
– Menino, não vá para a rua, que a Viúva Machado lhe pega.
Tempos depois, quando vim pela primeira vez à capital, ainda usando calças curtas, espantei-me ao ver na fachada de uma loja, na Avenida Rio Branco, o letreiro VIÚVA MACHADO. Aguçou-me a curiosidade saber algo mais a respeito dessa misteriosa personagem. Conversando com o meu pai, soube que tudo que se falava sobre ela não passava de boatos – boatos infamantes. Ela era boa pessoa, incapaz de cometer aqueles atos que a maledicência do povo lhe atribuía.
Recentemente, vim a saber de fonte fidedigna que o seu marido sofria de uma doença neurológica, e que lhe haviam aconselhado, para curá-la, comer bastante fígado bovino. Dona Amélia comprava, nos açougues, grandes quantidades da víscera, e daí teriam surgido os boatos.
DOM MARCOLINO DANTAS, O TROCADILHISTA
Dom Marcolino Dantas marcou época na História da Igreja em Natal; foi o quarto bispo e o primeiro arcebispo. Além de suas atividades à frente do clero, Dom Marcolino dedicava-se à literatura, tendo escrito dezenas e dezenas de sonetos. Era membro da Academia Potiguar de Letras. Suas produções literárias foram reunidas no livro “Dom Marcolino por ele mesmo”, com organização, prefácio e notas do Cônego José Mário de Medeiros.
Bem humorado, espirituoso, Sua Excelência Reverendíssima tinha o hábito de cometer trocadilhos, e tantos fez que entrou para o “folclore” natalense. Quando se fala no nome dele, lembra-se logo a sua fama de trocadilhista.
O escritor Jurandyr Navarro, prefaciador do livro acima citado, conta o seguinte episódio:
“Na década de 1930, numa comemoração do dia da Pátria, Dom Marcolino chegara atrasado ao palanque das autoridades. De pronto, o Interventor Federal, Raphael Fernandes, cede-lhe a Cadeira principal, num gesto cordial, dizendo ser ele, o Bispo, a maior autoridade ali presente. Respondeu-lhe Dom Marcolino: “- A cadeira é sua porque eu sou Bis-po – pó duas vezes.”
Traçando-lhe o perfil, com muita verve em seu livro “De Líricos e de Loucos”, Augusto Severo Neto narra, a certa altura:
“Na inauguração do Edifício Bila, na Ribeira, no meio da cerimônia da bênção, Dom Marcolino saiu-se com essa: “Natal não merece bala, pois é uma cidade bela, tem um homem como Bila, que não come bola e merece uma bula de louvor.”
Acrescenta Augusto:
“Já na inauguração das novas instalações do Café São Luis e também para a bênção (Dom Marcolino não havia sido convidado para a bênção das instalações do Café Maia, o único concorrente do São Luis, na época), falou, lá pelo meio, o nosso Bispo trocadilhista: “Quem diz São Luis não dismaia.”
Muitos trocadilhos atribuídos ao Bispo-Poeta, ainda hoje correm por aí, a maioria, talvez, invenção do povo.
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[…] FONTE: PAPO CULTURA […]