David Lynch é um dos diretores mais cultuados da história do cinema e, ao mesmo tempo, aquele com os filmes mais limítrofes. Cada trabalho dirigido por ele parece realizar uma renovação da linguagem cinematográfica, explorando convenções narrativas de um modo, na prática, subversivo. Suas obras alcançam uma espécie de hiper-realismo que é fundamentado, justamente, por uma fuga da realidade — fuga esta que existe para alcançar o real.
O cinema de Lynch apresenta temas que podem ser tidos como recorrentes e, claro, características autorais que se repetem desde o seu primeiro filme de longa-metragem (Eraserhead, de 1977). Há um mergulho constante em universos sensoriais, que exploram o máximo da relação filme-espectador, deixando, muitas vezes, claro o valor da experiência acima do valor do entendimento.
Para as obras lynchianas — e de acordo com o próprio —, o mais importante nunca é o que o diretor quis dizer, mas o que nós entendemos ou a significação que damos ao que assistimos. Ele, com seu cinema hiperbólico, promove o que de mais nobre pode haver nessa apreciação: liberdade para que seus filmes sejam milhões de filmes ao mesmo tempo, porque não é difícil que cada espectador encontre seus próprios significados e, com isso, esteja constantemente ativo ao assistir.
Lynch é um dos maiores gênios vivos do cinema não somente pelo que faz, mas pelo que representa para essa arte. Escolher os cinco melhores filmes de uma carreira que tem somente 10 — e todos acima de qualquer média — foi uma tarefa longe de ser fácil. Mas, assim como toda interpretação dos seus filmes pode estar certa, temos certeza de que qualquer lista feita também estaria.
Vamos às escolhas. Lembrando que, além dos 10 longas-metragens, Lynch tem outras 86 obras entre curtas, videoclipes e episódios de séries — muitos disponíveis livremente na internet. Sem falar na criação de Twin Peaks, tida por muitos como uma das melhores produções para TV já realizadas.
5. O Homem Elefante
O segundo longa-metragem de Lynch, lançado em 1980, desvia-se um pouco do seu trabalho anterior em questão de simbolismos estéticos. Por outro lado, demonstra uma clareza narrativa exuberante, que passaria a acompanhar a carreira do diretor.
https://www.youtube.com/watch?v=JQJdFwVXBTs
Na história, um cirurgião vitoriano resgata um homem desfigurado que é maltratado enquanto ganha a vida como uma aberração. Acontece que, por trás da fachada vista como monstruosa, revela-se uma pessoa de gentileza, inteligência e sofisticação. Seria uma metáfora do próprio Lynch, que, a despeito de filmes sensoriais, psicológicos, é um homem constantemente referido justamente com essas boas características por quem trabalha com ele?
4. Eraserhead
Para quem prefere entender rapidamente os filmes, Eraserhead pode ser a experiência mais enlouquecedora da lista. O primeiro longa de Lynch, lançado em 1977, é exatamente isso: uma experiência — cheia de símbolos, estranhezas e espaço para interpretações.
Na história, Henry Spencer (Jack Nance) tenta sobreviver em um ambiente industrial um tanto quanto inóspito, tendo, ao seu lado, uma namorada furiosa e os gritos insuportáveis de uma espécie de mutante recém-nascido.
3. Um História Real
Uma História Real talvez seja o filme mais fácil de digerir em um primeiro momento da lista. De repente, porque Lynch não tem participação no roteiro e, claro, porque tem o dedo da Walt Disney Pictures. A questão é essa inclusive: o domínio do diretor sobre uma linguagem compreensível é dos mais claros aqui.
Aliás, a direção é não menos que genial ao construir camadas e mais camadas a partir de uma história tão simples e bonita. Fugindo de qualquer sentimentalismo fácil, esse trabalho demonstra, entre tantas lindezas, a força da saudade, assim como o significado de querer ver alguém — que não precisa coincidir com ter muito o que conversar.
2. Cidade dos Sonhos
Um dos mais aclamados filmes da carreira de Lynch e constantemente posto em primeiro lugar nas listas de melhores filmes lançados até agora no século XXI, Cidade dos Sonhos é um apanhado fundamental do cinema de seu diretor e roteirista. Trata-se de uma paisagem de sonho que flerta com o surrealismo enquanto desconstrói o subgênero do film noir hollywoodiano.
Aqui, quanto menos sentido faz, mais é difícil deixar de assistir. É a experiência acima de tudo, a forma no domínio de imagem e som como raramente o cinema viu.
1. Veludo Azul
Raivosamente, o aclamado e, infelizmente, falecido crítico Roger Ebert concedeu a sua nota mínima a Veludo Azul quando da estreia (em 1986), em uma espécie de desaprovação por uma aproximação de Lynch com o sadismo. Ebert chegou a comparar o filme com a odiosa cena da manteiga de Último Tango em Paris (de Bernardo Bertolucci, 1972). Talvez tenha sido pela dificuldade habitual que todos temos de lidar com algo que transcende uma época, que comenta uma realidade absurda por meio dos absurdos da forma fílmica.
Nesse sentido, a única sugestão de otimismo de Veludo Azul pode dar as caras somente em seus últimos momentos, quando o céu finalmente fica azul, a luz do sol clareia a estética nebulosa e ilumina um pássaro. Nesse ponto, o mundo parece se encaixar. Tudo, porém, pode funcionar como uma camada fina, como um verniz — o “verniz da perfeição” (como anotou outro crítico, James Berardinelli). Acontece que, ao mesmo tempo em que o pássaro tem um besouro no bico, Lynch revela de onde vem aquele inseto e, com isso, completa um ciclo: a beleza existe, a natureza está ali, mas a desumanidade é uma inimiga faminta e íntima.
O filme é, em resumo, a extrapolação disso, do quanto a beleza pode esconder a feiura em suas camadas profundas. Veludo Azul, portanto, parte da descoberta, em um campo, de uma orelha humana cortada e constrói uma investigação relacionada a uma bela e misteriosa cantora — ligada a psicopatas sequestradores. Lynch é duro e, mesmo assim, jamais sai de sua essência.
Bônus: os curtas-metragens
Fiquem, agora, com uma lista de curtas de Lynch caso desejem viajar nas experiências propostas por ele:
https://www.youtube.com/watch?v=zMZOgev1ErU
Pois é isso. Ficam, então, todas essas indicações e o espaço dos comentários para acréscimos e tudo o que desejarem. Sem dúvida, como sempre ao fazer uma lista, foi dolorido, mas temos certeza que vocês conseguirão complementar e enriquecer o que está aí.
- Texto publicado originalmente em Canaltech