[CRÍTICA] Getúlio Vargas, o suicidado

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Assim como “Guernica”, quadro do pintor espanhol Pablo Picasso, supostamente inspirado no bombardeio da cidade basca de Guernica y Luno, pode ser visto como inegável criação artística naquilo que há de universal e que supera a mera definição da obra a partir de elementos periféricos, ou meramente históricos, técnicos e conceituais que a compõem, também em Última Hora, romance de José Almeida Júnior, apesar de contextualizado na década de 1950, explorando tanto os bastidores quanto os embates públicos na questão entre o poder, os veículos de comunicação e os movimentos sociais, a obra extrapola seu fundo histórico para dar vida e assumir o espaço da literatura como protagonista.

A riqueza de “Última Hora”, homônimo do jornal criado por Getúlio Vargas, através do empresário e editor-chefe Samuel Wainer, para enfrentar Carlos Lacerda e tantos outros opositores, reside justamente na capacidade do autor fazer com que sua obra atinja distintos públicos leitores.

Mossoroense José Almeida Junior
Por um lado, os que desconhecem a história política do Brasil, podem experimentar o prazer da leitura de uma ficção cuja linguagem é límpida e precisa, com tramas bem organizadas, uma narrativa dando voz e ação para os personagens que, de certa forma, oferecem elementos que darão a esse tipo de leitores uma espécie de iniciação na compreensão na queda de braço que implica o jogo político, considerando fatos como a criação da Petrobras, as relações entre as classes dominantes com o poder, a interferência do capital estrangeiro, as ações fascistas dos integralistas e da UDN de um lado e, do outro, os anarquistas, sociais-democratas, socialistas do PSB paulista, trotskistas da Liga Comunista Internacional e stalinistas do PCB (apesar do partido estar na clandestinidade), bem como os embates ocorridos através da imprensa.

Por outro, Última Hora também se dá como um prato cheio aos leitores que, política e historicamente informados, têm a possibilidade de uma reflexão sobre a estrutura de poder no Brasil que, apesar da obra ser um recorte da década de 1950, se mantém em vigor no atual momento, inclusive, com a permanência de personagens e grupos políticos que até hoje comandam o Estado e os meios de comunicação, bem como agentes internacionais, até hoje instalados e dando as cartas no país, como é o caso da família Marinho, a Esso, grandes empresários, etc.

De alguma maneira, a obra de José Almeida Júnior, em alguns pontos, inclusive, por se tratar também de um romance histórico, lembra “O homem que amava os cachorros”, de Leonardo Padura. Através de um narrador de nome Iván contando um pouco de sua própria história, o escritor cubano retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Leon Trotski e de seu assassino, o catalão Ramón Mercader, a serviço de Joseph Stalin. Histórias entrecruzadas que colocam em cena momentos da URSS stalinista, a guerra civil espanhola e as viagens de Trotski.

Da mesma forma, José Almeida Júnior também tece a obra a partir da trajetória do protagonista Marcos, assim como a de Samuel Wainer, simultaneamente com a história do último mandato do presidente Getúlio Vargas interrompido com seu suicídio, em paralelo com seus opositores. Ademais, além de Carlos Lacerda, também transitam pela obra Assis Chateaubriand, David Nasser, Gustavo Capanema, Tancredo Neves e tantos outros.

Entendendo a história como a possibilidade de explicação do mundo a partir dos rastros do passado e, a literatura, como outra forma de captar o real através da fantasia e da re-apresentação e, ainda, se podemos considerar que tanto a história quanto a literatura podem se dar como distintas espécies de ficção desafiando as fronteiras entre o controle das fontes e a liberdade de criação, em “Última Hora”, José Almeida Júnior age como um grande diretor de teatro que é capaz de fazer com que a riqueza da cenografia, do figurino e dos adereços sejam tão importantes ao ponto de desaparecerem para dar lugar à cena.

Enfim, levando em conta a presença de Nelson Rodrigues como um dos jornalistas do Última Hora, a obra de José Almeida Júnior nos revela “A vida como ela é…”

Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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