A menina e a mulher, no romance de Aline Prúcoli

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De certa forma, muitos dos conceitos são a morte do significado, no momento em que eles congelam o que deveria ser dinâmico e em processo de permanente construção. Ipso facto, falar de pustulâncias – menina bruta, de Aline Prúcoli de Souza, requer uma espécie de despojamento dos engessados rótulos acadêmicos para possibilitar uma viagem prazerosa no itinerário do que a autora desenha em suas letras.

Primeiramente, ainda levando em conta os conceitos, cabe ressaltar que apesar da obra entendida como um romance, ela extrapola esse gênero, na medida em que transita desde a dramaturgia até a poesia em prosa, passando por alguns aspectos do ensaio, da crônica, da memória e, de certa forma, da “narrativa”. Depois, como se diante de uma esfinge com a inscrição do “decifra-me ou devoro-te”, temos o termo pustulâncias que podemos, reduzindo o “significado”, entender como uma espécie de neologismo para se referir às pústulas, no espaço da epiderme onde se manifestam bolhas de uma infecção existencial-bacteriana.

Mas tudo isso pode ser compreendido como uma forma metafórica da autora explorar essas bolhas-poros, assim como as mônadas de Leibniz, compondo os pensamentos que organizam o universo, numa cosmogonia. Ainda, no enigma de esfinge, temos a “menina bruta”.

Consideremos a menina como um hiato cronológico-convencional entre a criança e a mulher e, a bruta, dividida entre o que é puro (não lapidado, quiçá, selvagem) e, por outro lado, o que está numa espécie de desajuste com os maneirismos hipócritas dos chamados “bons costumes” da sociedade.

Aline Prúcoli, em sua obra, diabolicamente, no bom sentido (e que me desculpe o diabo), pertence à sagrada família, entendendo que, aqui, o sentido do sagrado refere-se ao fato de que a autora compõe a galeria dos que revelam a comédia humana sempre disfarçada do divino, como se um exercício quase irônico da falácia da autoridade, como na lógica clássica aristotélica.

Dessa família sagrada a qual pertence, podemos citar Rimbaud, Mallarmé, Nietzsche, Leminski, etc. E, de certa forma, da falácia da autoridade, por meio de neologismos e escatologias, passa por Jacques Lacan, René Descartes, Alain Badiou e tantos outros, bem como alguns personagens como He-Man e Alice. Assim, também faz um passeio pela mitologia, desenhos animados da infância (perversidade e violência). Tudo isso para colocar em questão as fronteiras entre a fantasia e a realidade.

SER E NÃO SER

No labirinto por onde transita e encontra com alguns autores, irreverentemente, a autora cria o termo “Ex-siste”, uma espécie de ser e não ser ao mesmo tempo, como um desafio à impossibilidade da lógica cartesiana funcionar no submundo quando ela diz que a personagem “é uma menina esquisita como a autora dessas pustulâncias, que está decidida a escrever a mais escrota de todas as obras (anti) literárias”, lembra Antonin Artaud no Le Pése-nerfs (Pesa-nervos) afirmando que “toda a literatura é uma porcaria”. Ai também retoma um pouco do Ex-isto, filme de Cao Guimarâes, baseado em Catatau, de Paulo Leminski, quando afirma que René Descartes esteve no Brasil com Maurício de Nassau. Obviamente, um grande fracasso do discurso do cogito, ergo sun nos trópicos. É uma terra sem palmeiras onde canta o “carcará: pega, mata e come”.

No caso de Mallarmé, ela referenda que “o sujeito é um lance de dados que não extingue o acaso”. Assim, atreve-se ao lance de dados, mas nesse caso não se trata do branco da folha, mas da página repleta de letras e palavras que denunciam o vazio dos vocábulos quando estes são insuficientes para dar conta do espírito engasgado na necessidade de dizer o indizível. O dado tem seis lados, mas os seis lados do dado são o princípio da incerteza, considerando que a única certeza é o não saber qual dos lados se manifestará na hora do jogo, ou seja, a única certeza de Aline Prúcoli no lance de dados é apostar no lado sete, o lado que não existe, mas que é o único verdadeiro:o lado do não saber qual dele se manifestará no momento em que o cubo cessará o movimento no jogo.

De Arthur Rimbaud, “Um místico em estado selvagem”, conforme o poeta Paul Claudel, a autora confirma a ideia de que “j’est un autre” (eu é um outro) e, nesse exercício monodialogal, socorre-se ao jogo de anagramas em relação ao seu prenome Aline. Assim, cria seus interlocutores Enila, Laine, Ilena, Nelia e Aleni e, talvez como uma estratégia de provocar uma espécie de distanciamento ou de se proteger, deixa em oculto o sujeito protagonista: Alien (aqui, entendido como estranho ou estrangeiro), uma forma de dizer de si mesma como quem está de fora, ou seja, dentro ou fora são apenas duas perspectivas do olhar para aquilo que ocupa o mesmo lugar.

Mas tudo isso, de alguma maneira, é bastante interessante e intrigante, considerando que entre esse eu e não-eu, Aline Prúcoli transita também pela crueldade preconizada por Antonin Artaud. Não significa que sua obra adote algum tom confessional, tendo em vista que confessar já é assumir uma culpa diante de um mundo que já está dado. Mas ilustro e refiro-me à Artaud nessa crueldade, levando em conta uma atitude que a autora assume em ser cruel consigo mesma, na medida em que coloca suas vísceras à mostra. Tampouco creio que possa ser enquadrada nos conceitos do ego-realismo ou da autoficção, inclusive, esse último me parece uma grande besteira, considerando que toda ficção é autoficção, pois em qualquer situação o ser humano fala de onde está, ou seja, sempre de si mesmo diante de algo, apesar dele ser mais verdadeiro quando fala do outro que é a mais transparente forma de mostrar a si mesmo. E é assim que a autora se mostra quando dá a vez e a voz às diversas personagens alijadas da sociedade, como as mulheres, os pobres, os negros, os índios, etc.

Outro elemento fantástico da obra é a utilização da repetição da história. Há um momento em que ela reconta a história atualizando os fatos. Fala a menina que representa o passado e fala a mulher atual, vivendo as mesmas circunstâncias, mas agora com um olhar alterado pelas experiências que o tempo lhe impõe. Assim, rompe com a suposta dicotomia entre Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia. Heráclito afirma que “nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem”. Mas, para Parmênides, essa aparente mudança se dá como um fenômeno de superfície. Em pustulâncias, a voz da menina e da mulher são duas formas de dizer do mesmo. O rio continua sendo rio e as águas seguem águas condenadas pela ideia que as definem enquanto tais.

Enfim, Aline faz valer a máxima de que não interessa a intenção do autor, mas o texto tem sua força própria, na medida em que a realidade não existe anterior ao texto, mas que ela se realiza na medida em que a escrita se revela no momento mesmo em que é lida.

Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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