A genealogia da violência – uma crítica à graphic novel Monstros

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Durante longos 35 anos, Barry Windsor-Smith desafiou as probabilidades em uma luta intensa e poderosa pela perfeição artística, que transcende os tempos de sua produção e o século de seu surgimento. Windsor-Smith, que é reconhecido por trabalhos como “Conan, o bárbaro” e “X-Men”, passou mais de 16 anos longe do mercado de histórias em quadrinhos, após uma longa série de brigas com editoras por propriedade intelectual, e retorna com o seu melhor trabalho, superando, em muito, a fantástica hq Arma X.

Monstros era para ser, originalmente, uma história do Hulk, mas foi recusada pela Marvel e, anos depois, parte de suas ideias foram usadas por outros artistas. Por isso, os paralelos entre a graphic novel e as histórias do gigante esmeralda são tão grandes. Bruce Banner é Bobby Bailey, mas não é um dos maiores cientistas do mundo, é um jovem pobre e deficiente que se alista no exército americano. General Ross é o Major Roth, o chefe de uma instalação militar responsável por executar um experimento nazista com o propósito de criar um super-soldado.

A partir dessa base simples, arquétipa das histórias de super-heróis, Barry Windsor-Smith constrói um grande quadrinho, tanto em volume de páginas quanto em qualidade narrativa. Monstros é uma graphic novel incomparável. Ela é única, não por sua história, mas por trabalhar com tantos elementos conhecidos por qualquer leitor sem perder o sentimento de ineditismo presente em cada página, em cada reviravolta. Esse é um quadrinho para se ler e se surpreender constantemente.

O autor nos leva a conhecer a vida de cada personagem de modo profundo ao estruturar a narrativa em camadas temporais, com focos diversos. A graphic novel cresce à medida que sua história se expande, indo além dos quadrinhos de super-heróis em busca de uma humanidade que atravesse as feições deformadas, os cheiros repulsivos, os gestos terríveis e a violência de todo um século de desumanização. A busca pelos verdadeiros monstros dessa narrativa se torna um estudo para entendê-los, para ir além do que é visto, ir além da criatura horrenda. Mas sem esquecer o elo que liga todas essas histórias. Sem esquecer de Bobby Bailey, o protagonista.

Nesse caso, a palavra “protagonista” ganha um sentido peculiar. Bobby Bailey é o protagonista da história, mas é um dos personagens que menos aparece. Sua história é narrada pela perspectiva dos outros. Em nenhum momento, Bobby assume o controle de sua própria história. Ele jamais possuiu esse controle, Bobby sempre foi vítima das decisões que outras pessoas tomaram no seu lugar. O ser imenso e deformado na capa do quadrinho é o resultado dessas decisões, é o resultado de uma existência amaldiçoada.

Bobby Bailey é um personagem trágico pós-contemporâneo, é um Édipo condenado pelos deuses a sofrer na terra por um crime anterior ao seu pai. Mas por qual propósito? Qual razão poderia existir para tamanha violência? Qual seria o início desse caminho de sangue que uma alma inocente foi forçada a viver? Existe alguma explicação possível para essas perguntas? O quadrinho se desafia a respondê-las ou pelo menos a pintar uma imagem dessa resposta. Nessa imagem, lemos sobre uma genealogia da violência que percorre boa parte do século XX, transformando homens em monstros, matando o amor e matando a bondade. Contudo, mesmo nesse terreno escasso, o amor e a bondade resistem. As respostas para essas perguntas se tornam insignificantes. No fim, nenhum personagem pode mudar o passado. Resta a eles apenas fazerem o bem no presente. É então que o terrível realismo de Monstros dá lugar à poesia quando o quadrinho agrega o fantástico em sua narrativa.

Além disso, a obra de Windsor-Smith agrega a dor e a culpa de seus personagens na massa de seu miolo, sobrecarregando o leitor com sentimentos difíceis de serem descritos. É uma narrativa incômoda, intensa, com poucos momentos de respiro, o autor não busca diminuir a violência intrínseca na história. Porém, essa é uma retratação pura da natureza humana que não menospreza os bons sentimentos em prol de choques momentâneos no leitor. Não, muito pelo contrário.

Em Monstros, você não irá encontrar apenas brutalidade e injustiça, você irá encontrar amor, companheirismo, empatia e bondade. O mundo não é feito apenas de uma parte ruim, assim como essa história. Ela é feita com o carinho e a dedicação de 35 anos de trabalho. Ela foi constantemente escrita, reescrita, desenhada e redesenhada. E toda essa dedicação é vista em seus quadros, em seus enquadramentos, em sua diagramação, em suas páginas, em seus personagens, em seus diálogos, em seus textos. É essa dedicação que faz Monstros ser o que é, e o que o torna único e inesquecível. É o que o fará ser lido, comentado, analisado e discutido por anos e anos a fim.

Gabriel Cavalcanti

Gabriel Cavalcanti

Graduando de Letras-Francês, na UFRN, autor do zine Sonhos Marcianos para Terrestre Afogados, membro da Sociedade Secreta das Sarjetas.

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