O ano de 2023 colocou dois artistas na berlinda: o escritor Roald Dahl e o cineasta Wes Anderson.
Para quem não está ligando o nome à pessoa, Roald Dahl é autor de A Fantástica Fábrica de Chocolate, Matilda, James e o Pêssego Gigante, O Bom Gigante Amigo, Convenção das Bruxas e O Fantástico Sr. Raposo, todas adaptações bem-sucedidas para o cinema.
No entanto, Dahl foi cancelado devido à polêmica sobre alterações em seus livros, pela editora Puffin Books, a qual pretendia editar algumas passagens racistas, antissemitas e com preconceito de gênero para adequarem-se às questões e terminologias contemporâneas. A pressão foi tanta, tendo como críticos ferrenhos a essa postura o próprio Wes Anderson, o escritor Salman Rushdie e até o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak, que a editora decidiu publicar duas versões dos livros de Dahl: versões originais, lançadas pelo selo Penguin, e outras editadas para “jovens leitores”, com o selo da Puffin.
Já Wes Anderson teve uma enxurrada de IAs reproduzindo a sua estética pelas redes mundo afora, além de ter sido criticado como um cineasta que “perdeu a mão” por causa de seus dois últimos longas: A Crônica Francesa (2021) e Asteroid City (2023).
Nada melhor do que colocar mais lenha na fogueira. Assim, o diretor que já havia adaptado Dahl em O Fantástico Sr. Raposo (2009), materializou seu projeto de quatro adaptações de histórias curtas de seu escritor favorito, em parceria com a Netflix.
No final de setembro, estrearam na Netflix A Incrível História de Henry Sugar (41min.), O Cisne (17 min.), O Caçador de Ratos (17 min.) e Veneno (17 min.), todos roteirizados e dirigidos por Wes Anderson.
Wes Anderson é fã da “Estrutura da Boneca Russa”, também chamada de “Ponto de Vista Aninhado” (na qual um narrador apresenta a história, e depois as personagens assumem os papéis de narrador em primeira pessoa, como se fosse um “aninhamento” das vozes narrativas, uma sobrepujando a outra, tal qual uma boneca russa), presente nos livros de Dahl, e a empregou fielmente nesses curtas que trazem histórias com um tom amargo e um delicioso humor ácido.
Em A Incrível História de Henry Sugar, somos apresentados à história por meio de Dahl (Ralph Fiennes). Ele primeiro nos fala sobre seu ritual para começar a escrever, e mais tarde revela que a história de Henry lhe foi trazida por John Winston (Dev Patel), o qual o incumbiu de registrá-la e torná-la mundialmente conhecida. A narração de Dahl segue por meio de Henry Sugar (Benedict Cumberbatch), um ricaço que encontra o manuscrito “Um relato sobre Imdad Khan”, escrito pelo Dr. Z.Z. Chatterjee (Dev Patel), que a partir desse ponto assume a narração, contando como conheceu Imdad Khan (Ben Kingsley), que por sua vez relata como aprendeu a técnica de enxergar sem usar os olhos, técnica essa aprendida de forma mais rápida por Henry Sugar, com propósito inicialmente egoísta, e posteriormente convertido em atos humanitários, passando de Calcutá para Londres, Lausanne e terminando em Buckinghamshire (Condado localizado na porção sul da Inglaterra, onde Dahl escreveu a história), num corte temporal que começa em 1935 e segue até 1976.
Quando Dahl afirma não ser o autor original da história de Henry Sugar, ele nos remete a Cervantes, que dizia apenas ter encontrado a história de Dom Quixote num manuscrito árabe, de autoria de um certo Cide Hamete Benengeli, e convertido-a para o castelhano. Era Cervantes brincando com a imaginação, com o ato de criar, tal qual Wes Anderson brinca com o espectador.
Na tetralogia de curtas de Anderson há uma retomada ao tema de seu último longa, Asteroid City (filme que tem uma premissa bacana, mas deixou a desejar em sua execução): mostrar as nuances do processo criativo, brincando com a metalinguagem entre mídias diferentes. Se no longa há a interseção entre o dramaturgo escrevendo a peça, a peça sendo encenada no palco e no cinema e os bastidores da peça/do filme sendo mostrados num programa de TV, na série de curtas, Anderson foca na literatura e no teatro.
A Incrível História de Henry Sugar parece um teatro filmado (ou um áudio-livro dramatizado), com os cenários e os figurinos dos personagens sendo trocados diante do espectador, com interferência direta do “ajudante de palco”, que por vezes também muda algum personagem de lugar (os trilhos também são aparentes). É Anderson mais uma vez recorrendo a Cervantes, o qual mostrou ser possível fazer uma obra de entretenimento que tece críticas à forma como se produz as obras de entretenimento.
Para Anderson é importante tratar o cinema da forma mais orgânica possível, sem recorrer tanto a recursos tecnológicos “frios”, como o CGI. Ele prefere fazer maquetes e pensar arquitetônica e harmoniosamente os cenários (para poder tratar com precisão a simetria, tão característica dele), pois gosta de ser um artesão da sétima arte, tratando sua equipe como se fosse uma trupe de teatro (deixando os atores livres para trabalhar suas interpretações e dar sugestões para melhorar o todo). Daí porque seus filmes quebram a quarta parede sem o menor constrangimento.
A escolha dos outros três textos curtos de Dahl por Anderson nos informa quem o artista é, como ele se vê e a importância de se mostrar de forma sincera. Assim, podemos inferir que o menino/homem que sofria bullying de O cisne é Anderson sendo apedrejado pelos críticos; o caçador de ratos narrando sua estratégia para enganar os ratos é Anderson mostrando como o processo de contar história faz com que quem a ouve/leia aguce a imaginação e tenha no narrador alguém em quem confiar, mesmo que as tramas tragam elementos torpes e reprováveis; e a ingratidão (metaforicamente expressa como veneno) do oficial britânico Harry ao Dr. Ganderbai (médico indiano que veio lhe socorrer da provável picada mortal da cobra krait) representa o racismo do próprio Dahl, o qual Anderson não quis pasteurizar como fez a Puffin Books.
Se Wes Anderson deu uma escorregadela nos longas, ao fazer essa tetralogia de curtas ele se redimiu. E, de quebra, pode motivar o público a enxergar os textos do Roald Dahl sob uma nova perspectiva.