por Wilson Coêlho
“E nesse delírio, onde está o lugar do eu humano? Van Gogh buscou durante toda sua vida com uma singular energia e determinação, e ele não se suicidou num acesso de loucura, de desespero por não conseguir encontrá-lo, mas, pelo contrário, ele havia conseguido, tinha descoberto o que era e quem era quando a consciência coletiva da sociedade, para puni-lo por ter rompido as amarras, o suicidou”. Antonin Artaud
Pode soar exagerada a afirmação de Leo Jansen, curador do Museu Van Gogh, de que o livro VAN GOGH – A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, seja “a biografia definitiva para as próximas décadas”. Mas não o é, na medida em que estes autores conseguiram mesclar o inseparável e o confundível entre o homem e a obra do pintor holandês Vincent Willem van Gogh (Groot Zundert, Brabante, 1853 – Auvers-sur-Oise, 1890).
Nesta obra, Van Gogh não é reduzido a um mero personagem biográfico, mas é tratado como o protagonista de uma ideia de mundo a partir de si mesmo e de sua condição na história e, de certa forma, como ele mesmo afirmou ao seu irmão Theo um pouco antes de morrer: “o que minha arte é, eu sou também”.
A obra mostra a trajetória do pintor que jamais conseguiu abandonar os exageros ansiosos da juventude. Viveu como uma espécie de Ulisses que inventa suas próprias ilhas, que são o isolamento do homem capaz de colocar sua carne na churrasqueira da existência.
“Fico irritado quando me dizem que é arriscado se lançar ao mar”, exclamou diante de uma intervenção de Theo e completou justificando que “há segurança no olho do furacão”. Uma arriscada aventura onde o herói e o anti-herói se confundem na fusão do homem-artista-obra como acidentes de percurso no itinerário da arte como possibilidade de desvelar o mundo.
Na verdade, retomo um ambiente bastante agradável em discorrer sobre o tema, tanto pela admiração pela sua obra quanto por algumas dezenas de artigos esparsos, dissertações e teses que tenho lido sobre o pintor.
Coloco em destaque Van Gogh – le suicide de la société, (Van Gogh – o suicidado pela sociedade), de Antonin Artaud em suas Oeuvres Complètes, tomo XIII, da Gallimard. Também não poderia me olvidar da biografia Sede de viver – a vida trágica de Van Gogh, de Irving Stone. Tampouco não haveria de deixar no esquecimento a sua correspondência com o irmão Théo. No que diz respeito à filosofia, é escusado dizer da importância de Van Gogh na análise sobre a obra arte que Martin Heidegger faz em A origem da obra de arte, tendo como exemplo sua tela Os sapatos.
Como tentativa de estabelecer uma fidelidade cronológica, o livro é dividido em três partes, a saber: “Os anos iniciais, de 1853-1880”, “Os anos holandeses, 1880-6” e, por fim, “Os anos franceses, 1886-90” que culminam em sua morte. Mas a divisão do livro não está limitada à centralização da biografia do pintor, tendo em vista que explora todo o contexto político e sociológico e artístico de seu tempo.
Vincent Willen van Gogh era filho de Anna Cornelia Carbentus e Theodorus van Gogh. Para sua mãe, ele não passava de um filho cheio de ideias estranhas e “sonhadoras” que contrariavam seu sentido de mundo. Para ele, sua mãe se mostrava como tacanha e insensível. Nesse sentido, os autores mostram como cada dia a incompreensão da mãe fazia diminuir o amor para com o filho e, consequentemente, a incompreensão foi se transformando em impaciência, a impaciência em vergonha e a vergonha desaguando em raiva.
Aqui, Van Gogh é ressaltado em sua condição de “estrangeiro” na família, principalmente no que tange à sua mãe que, diga-se de passagem, uma espécie de matriarca que nunca o entendeu.
Naquela Holanda, em fins do século XIX, mesmo em sua convivência dentro de um oceano de analfabetismo católico rural, onde a Bíblia era considerada “o melhor livro” e muitos autores serem excluídos por serem tomados como imoderados ou perturbadores, Van Gogh, desafinando o coro dos contentes, lia Goethe, Schiller, Uhland, Heine, Shakespeare, Dumas, Molière e outros. Este voraz leitor acaba por confirmar sua “estranheza” junto à família.
Van Gogh Quixote
Decidido a romper com esse estado de coisas e, encarnando o espírito de Quixote, talvez como uma possibilidade de escapar da pecha de louco que o imputavam, resolve lutar contra os moinhos de vento e perambula pelo mundo das ideias, da geografia e da arte. Num período inicial, seu primeiro fracasso foi arriscar-se no comércio da arte.
Depois, investe numa outra ilegítima tentativa de se dedicar ao sacerdócio em uma missão evangélica como andarilho. Ainda fez uma aventura em ilustrações de revistas e, por fim, apesar de fulgurante, fecunda e maravilhosa, uma brevíssima carreira de pintor.
Da missão evangélica, destaco sua estada em Borinage. Pode-se dizer que Van Gogh, de alguma maneira, antecipa a teologia da libertação, considerando que se envolveu tanto com os trabalhadores das minas de carvão que acabou por fazer com que Cristo descesse da comodidade de sua cruz para compartilhar dos problemas humanos, tanto do ponto de vista existencial quanto social. Obviamente, fora expulso da missão pelo próprio tio, Reverendo Van der Brink, que havia lhe confiado o cargo.
No romance Germinal, de Émile Zola, Van Gogh é personagem, uma espécie de Cristo e revolucionário ao mesmo tempo. Mas Zola não sabia que se tratava de Van Gogh. Isso só foi descoberto alguns anos depois, quando Zola e Van Gogh
tomavam um café em Paris.
Também não podemos nos esquecer de suas paixões desenfreadas e suas aventuras amorosas com as mulheres como Úrsula, Christine, Rachel, Kay, Margot e tantas outras.
Quanto ao seu suposto suicídio, pairam muitas dúvidas, pois conforme os dois médicos que analisaram Van Gogh depois de ferido, a bala entrara no corpo em ângulo oblíquo (não reto) e não saíra de seu corpo e, ainda, ficara alojada próximo da coluna vertebral; a arma era um revólver de pequeno calibre e, enfim, o disparo fora feito à uma distância do corpo e não à queima roupa. Na verdade, nunca foi apresentada nenhuma prova material do disparo, não se sabe do local do disparo e, sequer foi feito uma autópsia.
Enfim, a morte de Van Gogh ainda permanece um mistério. De acordo com os relatos, tanto da polícia quanto dos médicos, há momentos em que reinam a dúvida sobre três possibilidades da morte de Van Gogh: a de ter cometido suicídio, se acidentado ou assassinado. Acredito na quarta alternativa, ou seja, naquela em que qualquer uma das três anteriores não faz nenhuma diferença, considerando que, conforme Antonin Artaud, Van Gogh fora suicidado pela sociedade.
Ainda, inspirado em Artaud, cabe a indagação: “pode-se falar da boa saúde mental de Van Gogh que, em toda a sua vida apenas assou uma das mãos e, fora disso, limitou-se a cortar a orelha esquerda numa ocasião, num mundo no qual se come vagina assada com molho verde ou sexo de recém-nascido flagelado e triturado, assim que sai do ventre materno?”