Tributo ao forró

Ai quem me dera se eu morresse lá na serra
Abraçado à minha terra, e dormindo de uma vez
Ser enterrado numa grota pequenina onde à tarde a sururina chora a sua viuvez

Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco

Minha paixão pelo forró é coisa antiga. E com ela nasceu meu encanto por Luiz Gonzaga. Ou seria o contrário? Acho que meu primeiro encontro com a obra do velho Lua foi na sétima série (hoje oitavo ano do ensino fundamental), quando a professora de Língua Portuguesa, Mirtes Varela, passou uma atividade de análise textual com a letra de “Asa branca”. Lembro de chegar em casa naquele dia e pedir ajuda ao meu irmão Jonas para realizar a atividade. Lembro, também, meu alumbramento com a letra daquela canção. A composição de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga é um hino do Nordeste e continua me emocionando até hoje. Uma obra-prima do cancioneiro brasileiro. Um hino/lamento sertanejo. Composta em 1947, “Asa branca” retrata a saga de milhares de nordestinos que fugiram da seca e deixaram sua terra em busca de uma vida melhor no Sul/Sudeste do país. “A seca terrível que tudo devora”, como cantou o velho Lua.

E quantos de nós não temos um parente e/ou amigo que viveu/vive essa realidade? Minha mãe, por exemplo, trabalhou como empregada doméstica em São Paulo durante algum tempo. Depois, retornou ao seu Pernambuco. Lembro de uma época em que trabalhava na lavoura de café e me levava junto para ajudá-la. Lembro da viagem de caminhão até o cafezal e da pausa para o almoço, a velha boia fria. Hoje ela vive na zona rural de Pernambuco, muito bem cuidada por sua amiga Aparecida Santos e seu esposo, Severino, e por minha irmã mais velha, Adriana Bulhões. A canção “Triste partida”, letra de Patativa do Assaré, e interpretada por Luiz Gonzaga, é também um exemplo dessa realidade de quem deixou “o seco nordeste” rumo a São Paulo.

Essas lembranças me vieram à mente quando decidi escrever um texto para lembrar o aniversário de nascimento de Luiz Gonzaga (13 de dezembro) e também para celebrar um programa de tv cujo principal objetivo é difundir o gênero musical que consagrou o filho de seu Januário como Rei do Baião e recentemente foi instituído como manifestação da cultura nacional (uma lei que pode garantir, entre outras coisas, mais recursos para os projetos/artistas ligados ao forró). Gênero que o tornou conhecido Brasil afora. Gênero que fez o eixo Sul-Sudeste olhar para o Nordeste (e para seus artistas) com outros olhos. Afinal, Luiz Gonzaga é uma voz que representa todo o pedaço esquecido do Brasil, como disse seu filho, Gonzaguinha.

E não pensem que foi fácil construir aquela imagem de nordestino que consolidou sua carreira e garantiu uma identidade da qual ele sempre se orgulhava. Aliás, a ideia de cantar música nordestina foi de um grupo de estudantes cearenses que o escutava na zona boemia do Rio de Janeiro, após o ex-soldado deixar o quartel com a intenção de voltar para sua terra, numa época em que outros gêneros musicais faziam sucesso (tangos, fados, valsas, foxtrotes). Os rapazes pediram que Luiz Gonzaga cantasse algo de sua terra para matar a saudade do sertão, após descobrirem que estavam diante de um conterrâneo nascido em Exu. Algum tempo depois, surgiu a ideia de adotar o gibão e o chapéu de couro como parte de sua indumentária. Figurino que o consagraria e continua sendo usado por seus devotos, como é o caso de Arnaldo Farias, artista potiguar que em muito lembra o velho Lua, tanto por sua compleição física como por seu timbre de voz, e sempre emociona a plateia quando entoa clássicos como “A morte do vaqueiro”, por exemplo. Arnaldo Farias teve o privilégio de abrir um show de Luiz Gonzaga em Parnamirim e teve sua carreira abençoada pelo rei.

Ainda sobre a consagração de Luiz Gonzaga no cenário musical. Foi preciso muita luta para consolidar a imagem de um artista que cantava as coisas da sua terra e de sua gente de um jeito único e não deixava ninguém parado quando tocava sua sanfona. Um homem preto, nordestino, de origem humilde, que sofreu muito preconceito/racismo (ele já foi impedido de entrar numa rádio por ser preto), conquistou o Brasil com seu jeito alegre/irresistível de fazer música. Afinal, quem consegue ficar parado quando escuta “Numa sala de reboco”, “Pagode russo”, “Vem morena”…?

Voltemos ao tema central da crônica e às homenagens de hoje. O programa ao qual me refiro é “O forró já começou”, exibido na TV Futuro (canal 14.1 na tv aberta e canal 123 na parabólica). Idealizado por Fernando Lucena e apresentado por ele e Kanelinha, músico caicoense que tem emocionado os telespectadores com suas apresentações no programa que vai ao ar todos os domingos, às 18h. O programa, que tem duração e uma hora e meia, é uma homenagem a Luiz Gonzaga, segundo Fernando Lucena. Quem vê a sintonia dos dois em cena, pode pensar que se trata de dois amigos de longa data. Ledo engano. Lucena conheceu Kanelinha há pouco tempo e foi arrebatado pelo seu talento em uma festa do Sindlimp, do qual é presidente. E não é pra menos, Kanelinha é um músico eclético, com uma presença de palco arrebatadora e uma alegria contagiante. Lucena ficou encantando com o artista e pouco tempo depois o convidou para o programa que hoje é sucesso e já faz parte da programação dominical de centenas de famílias norte-rio-grandenses (o programa já alcançou a marca 100 mil televisores ligados). E agora está sendo exibido em rede nacional. É o fraco!

Conhecedor do que há de melhor em matéria de forró, Kanelinha, também produtor musical, traz ao programa os grandes nomes do gênero no Rio Grande do Norte, embora muitas vezes desconhecidos da maioria das pessoas porque não temos ainda uma cultura de valorização dos nossos artistas e, portanto, do fortalecimento da nossa produção/identidade cultural, com exceção de alguns trabalhos, como o projeto Roda Potiguar de Forró, idealizado por Tanda Macêdo, o projeto Sesi Solar Bela Vista, que homenageou Elino Julião com um show de Roda Potiguar de Forró em 2023. O Solar de Elino Julião é uma referência ao Dia Estadual do Forró, comemorado em 13 de novembro, data de nascimento do homenageado. Cantor e compositor, Elino Julião é autor de sucessos como “Rabo do jumento”, “Meu cofrinho de amor” e “Forró da Coreia”.

A propósito, é inacreditável que na terra de Elino Julião se fale tão pouco de forró e que as rádios toquem pouquíssimas canções de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Trio Nordestino, Marinês, Anastácia, Elino Julião, Alcimar Monteiro, Assisão, Jorge de Altinho… Acho que isso só acontece na época do São João. Precisamos mudar essa realidade e um dos objetivos de Fernando Lucena é justamente difundir essa cultura para um maior número de pessoas, especialmente para as crianças e jovens. Alguns nomes que passaram pelo programa “O forró já começou”: Arnaldo Farias, Roberto do Acordeon, Nara Costa, Trio Alegria, Robertinho do Acordeon, As Potyguaras, Tanda Macêdo, Gilvan Costa.

Premiado no Programa do Ratinho, em outubro de 2023, Gilvan Costa sequer foi lembrado no Rio Grande do Norte por ter sido eleito o artista com a voz mais semelhante à de Luiz Gonzaga. Ele venceu o concurso com o clássico “Numa sala de reboco”. Sua participação no programa “O forró já começou” foi emocionante. Espero ter a oportunidade de assistir a um show dele. Espero, também, que o estado do Rio Grande do Norte valorize mais seus artistas (e pague os devidos cachês em festas de Carnaval, São João e similares) e que Gilvan Costa tenha mais oportunidades de mostrar seu trabalho dentro e fora do estado. Um trabalho que aliás tem sido fundamental para a valorização do forró e, especialmente, da obra de Luiz Gonzaga.

E por falar em festa, a confraternização natalina do programa “O forró já começou”, além das alegrias de um momento como esse, nos reservou muitas emoções. Uma delas foi a participação especial de dona Edna Regina, 81 anos, avó materna de Chris Fernandes, que está na TV Futuro todos os domingos para assistir ao programa e prestigiar o trabalho da neta. Versátil e muito carismática, Khris é uma das cantoras que acompanha Kanelinha no programa e sempre me emociona com suas interpretações (adoro quando ela canta “Assum preto”, “Feira de mangaio”). Dona Edna cantou “Lama”, na interpretação de Núbia Lafayette, e ainda acompanhou Khris fazendo coro numa canção de Zé Ramalho, “Chão de giz”. Impossível não se emocionar com sua voz limpa, potente e suave. Foi uma honra escutá-la naquela noite. Seu sorriso tímido e seu olhar firme também me encantaram naquele momento. Difícil não se emocionar com a beleza do seu canto. Obrigada, querida, por nos mostrar a força e a beleza da arte!

O discurso emocionado de Fernando Lucena foi um dos pontos altos da noite. Entre outras declarações, ele falou do seu desejo de que todos os cidadãos possam viver dignamente. Seu espírito aguerrido e sua sede de justiça social estão sempre marcados em suas falas combativas, nos fazendo lembrar o cidadão, o sindicalista e o político que o constituem. Com a voz embargada, emocionou a todos e seguiu falando da importância de celebrar um programa que tem trazido alegria e esperança aos amantes da cultura nordestina, especialmente do forró pé de serra. Sua declaração de amor à equipe do programa foi muito linda.

E nossa confraternização natalina acabou refletindo um pouco do clima do programa, que é um tributo a Luiz Gonzaga, um tributo ao forró, um tributo à cultura e ao povo nordestino. (Detalhe: por sugestão de Kanelinha, a festa foi realizada no dia do aniversário de nascimento de Luiz Gonzaga). E a crônica de hoje é também um tributo. Um tributo a Fernando Lucena, pela iniciativa de realizar um programa como “O forró já começou”.

E para não me estender mais, e não enfadar o dileto leitor, encerro a crônica de hoje com uma reflexão do velho Lua. Em 1989, Luiz Gonzaga fez uma declaração que lembra as palavras de Fernando Lucena e o que ele vem defendendo com unhas e dentes quando o assunto é forró/cultura nordestina: “O nordestino não morre sem lutar. Nós vamos continuar lutando pelo forró, pelo baião, pelo xaxado, pelo xote”. Vamos continuar lutando, seu Luiz.