Lisboa – Portugal, 10 de Julho de 2006
O avião que nos trouxe até Lisboa atrasou. Isso fez com que eu e Uriel (meu filho de 10 anos) perdêssemos a final da Copa do Mundo. Não adiantou ter planejado tudo milimetricamente para assistirmos a partida em Lisboa. As contingências do tráfego aéreo fizeram com que descêssemos no aeroporto já no final da prorrogação. Foi a primeira vez que isso me aconteceu desde 1982, ano em que me lembro ter acompanhado a minha primeira Copa.
Só não afirmo que perdemos totalmente o jogo porque soubemos, na fila do passaporte, já no desembarque, da inacreditável expulsão de Zidane por causa de uma cabeçada idiota em Marco Materazzi. Um escândalo. Não apenas pelo fato de esta ser provavelmente a última partida em mundiais de um jogador genial como Zizou, mas também pelo fato de ele ter “usado a cabeça” do modo menos inteligente num jogo tão importante como esse.
O fato é que a gente teve de acompanhar esse momento histórico do futebol no aeroporto, pelo rádio.
Ninguém tinha ideia de algum lugar no qual se pudesse assistir um jogo pela tv e tomar uma cerveja e estávamos muito preocupados com os trâmites de entrada em Portugal, a ansiedade para pegar a bagagem e as tratativas para alugar um carro que coubesse todo mundo.
Por um lado isso foi providencial porque o jogo parece que foi uma bosta e, pelo rádio, com o narrador impondo uma emoção acústica à partida, qualquer pelada de várzea se torna um jogo épico.
Depois que resolvemos o problema do carro, deixamos para trás o aeroporto de Lisboa, uma Itália em êxtase pelo seu quarto título mundial, uma França envergonhada pelo vexame global de seu maior ídolo e viajamos até um lugar chamado Almoçageme. Obviamente, o nome deve ter algo a ver com os árabes, ou melhor, com os mouros.
Esses nomes com “Al” dão uma bandeira arretada do que é Portugal e a península Ibérica. Uma zona de confluência. Um limite entre o mundo caucasoide de uma Europa que se pensa ariana e uma África berbere, marcada pelo crescente mulçumano.
O lugar é uma pequena vila, cheia de ladeiras e ruas íngremes incrustrada em uma zona cercada de colinas de rochas escuras que fica à noroeste de Lisboa. Para chegar lá tivemos que contornar a serra de Sintra durante a noite, cuidando para sobreviver na estrada escura, estreita e cheia de curvas sinistras.
O fato é que o dia amanheceu encoberto por uma neblina espessa, o que tornou o clima excessivamente frio para qualquer verão que eu já tenha experimentado no lado sul do Equador. Nas tais “zonas tórridas” da terra, os locais onde tecnicamente seria impossível a existência de vida racional, como faziam referência os geógrafos da antiguidade.
O lugar parece estar tomado por turistas e como é verão e as pessoas usam roupas leves e falam português, quase tenho a sensação de não ter saído do Brasil. Nós alugamos uma casa na Rua da Cerâmica. Uma construção com dois andares, confortável e que tem uma escrivaninha estranha, que eu não consigo abrir. O que terá dentro dela? Seria incrível se fosse uma cópia empoeirada do velho Livro das Transmutações ou alguma carta antiga de um alquimista português que não seja leitor de Paulo Coelho. Mas se fosse assim, essa seria uma narrativa fantástica e não um diário de viagem.
Pela quantidade de bandeiras de Portugal penduradas nas janelas do lugar parece que os patrícios estão experimentando um mesmo tipo de surto nacionalista que nós, brasileiros, experimentamos quatro anos atrás, quando vencemos a Copa no Japão com aquela atuação magistral de Rivaldo e de Ronaldo “fenômeno” sem chilique neurológico. O mais curioso, além de ter assistido depoimentos com sotaque português de Portugal sobre a fogueira santa da universal na TV (outro produto de exportação brasileiro, além dos jogadores de futebol, do técnico Luís Felipe Scolari e do seriado malhação, que passa aqui também) é a incrível semelhança física do povo dessa região com o povo de algumas regiões do Brasil..
Enquanto comia uma pizza na estrada entre Lisboa e Sintra, ontem à noite, pude abstrair o espaço geográfico e o sotaque. Olhei apenas para o rosto das pessoas, a cor da pele, o formato dos narizes, a cor dos cabelos. Parecia que eu estava lá na Serra do Martins, em Currais Novos ou numa Caicó dessas da vida, só que mais rica e mais fria.
Ah… outra coisa curiosa: A lua daqui é diferente da do Brasil. Ela parece maior e menos iluminada. É como se estivesse mais perto da terra e mais longe do sol. Vou aguardar a neblina dissipar pra ver se essa impressão se confirma. Talvez, quem sabe, amanhã, o sol apareça para acalmar minha alma tropical e trazer algum sintoma de verão a essa viagem.
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[…] de província, ares de terror claustrofóbico. Isso porque se você, amigo velho, já achou a estrada entre Sintra e Almoçageme estreita, espere para andar na estrada que dá acesso ao farol da Roca! Em alguns lugares, com mão dupla, […]