Está por vir o dia. Noite quase em seu fim. Já se abocaram os cachorros, dos pobres vira-latas aos de raça menos vagabunda, nos quintais. Os bares há horas já fecharam, e os justos tendem a sonhar, já cessam todos o barulho do torpor diário. Apenas um ou outro veículo sobe a pista asfaltada, ou desce e passa sob as ruas calçadas, que voltam de algum bar tardio das bandas alheias ou dos cabarés. Conversam, riem e logo desaparecem na estreita laguna escura da noite.
Por fim, o silêncio quase total se instala, quebrado só pelo ruído de um apito que segue sua pedalada, em cima de um veículo de mecanismo francês tão velho quanto os motores que outrora assolaram a noite e agoniaram os latidos caninos.
Para mim, o apito, este é sempre um ruído abissal, que me faz lembrar com mergulhos fundos um passado. Me traz de volta à memória os velhos tempos de Natal, das primeiras madrugadas de insônia assistidas somente por mim, no meu quarto, quando garotinho, e ficava acordada contado o barulho do apito por várias vezes, e por várias noites. O barulho frenético e quase incansável do veículo que rastejava suas rodas de borracha escura pelas ruas.
Por muitas vezes fantasiei me refugiando do sono, no longo silvo daquele apito que com o passar das horas já perdia o vigor, e sua intensidade legitima, e daquela pessoas que mudavam de fisionomia a cada pernoite. Curtia criar, e imaginar as cenas cheias de perigos, em que não faltavam naus cercadas de sirenes e homens mascarados, pulando muros e fazendo algazarras nos quintais alheios, deixando aflitos os animais de fundo de quintal que circulavam o terreno e tocalhavam seus donos, enquanto repousavam. Um instinto de estilo Alan Poe, inteiramente; Os Crimes da Rua Morgue, administrados por gritos de socorro nefastos.
Alguns anos mais maduro, mais capitalista e menos sonhador (nem tão menos, sou persistente em matéria de sonhos), ainda sou fã da noite, jaqueta jeans, James Dean, estilo rockabilly, bebidas e drogas em horas tenebrosas.
Sabe, ainda gosto de ouvir o apito daqui, do primeiro quarto da casa nova, no centro de um interior, lugar que escolhi pra traçar um movo plano de rota ou fuga, sobre a vida. Sempre que posso driblar a tirania dos dias comuns de trabalho e que não estou na selva de pedra, estou por aqui escapando nessa terrinha.
Levantei e fui à janela do meu quarto, tendo acesso à garagem, que pelas brechas sorrateiras do portão, se vê a rua. Olhei em torno. O vento mandou embora as poucas nuvens. A lua dançava a valsa da noite livremente por cima das serras, cravejada de luzes. Luzes de casas que se espalham pelos morros habitados, amparados na encosta do maciço de pedra. Durante anos as reparei, coisa que os locais também reparam, por isso muitas das vezes me julgo nativo, não mais forasteiro. Os bicos de luz aumentaram suas quantidades, ainda bem. Deixou a serra mais bonita, principalmente no calar da noite, fazendo daqueles cravos de luzes uma estrela, de um alguém que a gente imagine morar lá.
De repente, o tenebroso silêncio noturno é rompido com violência extrema. Um cachorro ao longe late insistentemente. Me afasto da janela. Ouço pólvora. Me questiono se na verdade são mesmo fogos. E são poucos, ao meu julgar, em torno de 5 ou 7 estouros, e são consecutivos.
Já não ouço mais o barulho da máquina francesa de pneus de borracha. Ele ficou esquecida no meio da noite, até imagino que seja por culpa da pólvora estourada. E nem sei se mais alguém, além de mim, escutou aqueles fogos. Sei que diante do que poderia ser desespero, já interrompendo outrora minha meditação sossegada, vejo um amanhecer com sangue, um dia com pena e um tempo cheio de indignação.