Sobrevalorizando cervejarias em seu post-mortem: práticas de rapina do mercado secundário

Anchor Brewing

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Saudações, cervejeiros vivos!

Abram o olho!

Hoje vamos falar de uma seara um tanto quanto controversa do cenário das cervejas artesanais denominado de mercado secundário. Mais especificamente, vamos comentar algumas práticas um tanto quanto duvidosas ocorridas nesse mercado, acerca da sobrevalorização de cervejarias em seu post-mortem (após o encerramento de suas atividades).

O cerne da questão, que me levou a escrever sobre o tema, foi o anúncio feito alguns dias atrás (dia 14 de julho, para ser mais específico) que uma famosa cervejaria artesanal americana, a Anchor Brewing, estava por anunciar o fechamento de suas portas.

A cervejaria em comento já estava em atividade há mais de 127 anos, sendo uma das mais longevas do mercado cervejeiro artesanal. Ela também contava em seu portfólio com alguns estilos de cervejas históricos, unicamente produzidos por ela, a exemplo da California Common (conhecido também como: Steam Beer), um estilo de cerveja rústico, de levedura Lager, mas fermentado em altas temperaturas (um contrassenso cervejeiro).

Mais importante do que a história da cervejaria propriamente dita, ou de seus préstimos ao longo dos anos, é perceber o que aconteceu após a sua “morte”, e a agitação que ela causou no cenário cervejeiro artesanal. Esse será o foco da reflexão contida no texto de hoje.

O mercado secundário: quem é, onde anda, o que faz?

De maneira bastante simplória, pode-se definir o mercado secundário cervejeiro como qualquer pessoa (física) que negocia, de forma eventual, qualquer item atrelado à cultura cervejeira, como, cervejas em garrafa, latas, copos, taças, abridores, luminosos, e qualquer outro acessório correlato.

Em última instância, qualquer um, que alguma vez na vida, vendeu ou comprou alguma cerveja ou outro item correlato de outra pessoa que não seja uma loja ou diretamente na cervejaria, já participou do mercado secundário. Outrossim, o mercado secundário sou eu, ou você, ou o seu vizinho, ou o cara da esquina.

Em última instância, quem não produz e vende diretamente, e mesmo assim vende algo, insere-se, automaticamente, no mercado secundário. Contudo, nem sempre, somos todos iguais nesta noite, diria Ivan Lins ao cantar sobre Dinorah…

Uns são mais iguais que outros, talvez mais espertos, caso a palavra se encaixe melhor no eufemismo que alguém quiser colocar em questão. O ponto é, a “morte” de uma cervejaria pode ser uma ótima janela de negócios, tal qual a abertura sucessória em uma herança, para quem porventura detenha direitos sobre o patrimônio do de cujus.

Inflacionando cervejas depois do encerramento das atividades

O fenômeno a ser observado com o que ocorreu com a Anchor Brewing recentemente não é diverso do que ocorre quando um grande artista falece: sua discografia/filmografia ou suas obras de arte se valorizam de maneira estonteante e sem motivo aparente.

Isso é ainda mais evidenciado quando o artista nem é assim tão talentoso a ponto de sua morte ser o ápice de sua trajetória como uma estrela para os demais reles mortais.

Destarte, não estou tentando apontar que a Anchor Brewing não era uma cervejaria assim tão dileta quanto se possa pensar (apesar de, eu, pessoalmente, de fato, achar isso sim), o ponto é que qualquer uma outra cervejaria internacional famosa em seu lugar teria mais ou menos a mesma repercussão.

O mais horrendo a ser observado é como cervejas tradicionais de sua produção regular, por vezes vendidas aqui em terras de Pindorama, na promoção, por 10 a 15 reais, tiveram um salto vertiginoso após o anúncio do seu fechamento.

As cervejas citadas passaram a ser leiloadas!

Com lances iniciais de 250 reais!

E, o pior de tudo isso, não faltou quem arriscasse tentar arrematar essas pechinchas! Acredite se puder!

O salto quantitativo por si só já foge de qualquer parâmetro daquilo que a cervejaria exibe na qualidade das suas cervejas, por mais que sejam importadas, nunca custaram nem um décimo daquilo que estava a ser pedido freneticamente na maioria dos grupos de WhatsApp de colecionismo cervejeiro. Uma sobrevalorização desproporcional, apenas porque a cervejaria havia há pouco anunciado o fechamento.

As aves de rapina no mercado secundário

Aves de rapina são conhecidas porque predam carcaças. Elas tem um sistema fisiologicamente adaptados para serem saprófitas, ou seja, alimentar-se de material ou tecidos em decomposição.

Os vendedores mais astutos do mercado secundário agem de maneira semelhante não ao degustarem cervejas já vencidas (embora alguns também se locupletem dessa maneira ominosa), e sim exibem seus dotes de rapina ao inflacionar desmedidamente cervejas de indústrias que fecharam suas portas. Ou seja, que morreram para o mercado cervejeiro.

Certamente, a maioria das cervejas anunciadas com a sobrevalorização desmedida estava, na verdade, antes do anúncio do encerramento das atividades da Anchor Brewing, encalhadas em estoques empoeirados de garagens nas periferias das grandes cidades do Brasil. Sem compradores e sem nenhuma perspectiva de servir de capital de giro.

Contudo, a ocasião sempre faz a festa para quem quer moldar-se de esperto à situação que surge. A falência da Anchor Brewing era o cenário ideal para a desova do estoque esquecido e empoeirado. Seria isso ou esperar o vencimento para se livrar delas de qualquer maneira, ainda que lucrando quase nada.

Mas, parecia que dessa vez, a morte viria para servir (mais uma vez) de salvação.

Saideira

O fato mais engraçado, e que serve de ensaio para a minha saideira sobre o tema é que, pouco tempo depois do anúncio do fechamento da Anchor Brewing, ainda no auge dos leilões desvairados de preços pornográficos, houve uma reviravolta no caso.

O sindicato dos empregados da cervejaria lançou uma proposta a Sapporo USA (a empresa controladora da Anchor Brewing) para que eles retomassem as atividades produtivas de modo a atuarem como uma cooperativa no setor.

Afinal, essa é a grande chance de continuar desenvolvendo o trabalho cervejeiro artesanal, mantendo a instituição histórica em funcionamento, dada a grande identificação dos seus empregados com a localidade e também com o produto feito. A maioria absoluta dos empregados e também dos gerentes da Anchor Brewing abraçaram a ideia e as negociações seguem firmes, com grandes chances de sucesso.

Essa notícia foi um grande balde de água fria nos especuladores do mercado secundário, tanto os americanos, que haviam promovido uma corrida ao taproom da cervejaria, aumentando em mais de 4000% o volume de vendas, quanto os tupiniquins, que viram os lances em leilões simplesmente sumirem.

De toda a situação podemos tirar duas grandes lições: urubu ganancioso e apressado morre de fome; e, somente os próprios empregados unidos, como força proletária de desenvolvimento econômico, são capazes de salvar a si mesmos das agruras do capitalismo selvagem.

Recomendação Musical

Sem muitas delongas, e também sem explicar muito, deixo como recomendação musical a canção (a minha preferida da banda): Bichos Escrotos, dos monstros sagrados do rock nacional, os Titãs!

Apreciem!

Saúde!

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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