Será que “eh tudo ipa?”Até a Cold Ipa?

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Saudações, cervejeiros!

Não sou um nominalista medieval, daqueles que depreendiam que as palavras são reduções aos particulares. Ou seja, o nome de cada objeto é necessário para definir aquilo que ele é, na realidade.

Todavia, existe alguns dissensos, ou diria, algumas pequenas lacunas conceituais que esbarram em nomenclaturas, ou na criação de novos nomes para estilos já existentes no universo cervejeiro. Caso eu fosse um nominalista mesmo, nem chamaria de “universo”, já que cada coisa deveria ter um nome em específico.

A celeuma da vez orbita em torno de “dois” (ou seria um só com dois nomes diferentes, ou, quiçá três nomes? Vamos descobrir mais adiante) estilos que se parecem bastante, tem os mesmos constituintes e apenas ligeiras diferenças de produção. De um lado, postula-se a existência de uma “Cold IPA” de outra banda, não seria exatamente uma IPA, e sim, uma IPL.

A pequena variação na letra final, de IPA para IPL, será melhor explicada adiante, e tem a ver com o tipo de levedura usada (ou não… talvez se relacione com a temperatura aplicada ao processo cervejeiro, mas de toda forma, abordaremos). Tudo isso pode fazer uma grande diferença no resultado final.

A partir dessa sopa de letrinhas, vamos tentar chamar a cerveja (ou melhor, o estilo de cerveja) posto pelo seu nome. Será que é mais apropriado Cold IPA? Ou IPL? Ou algum outro nome?

A pergunta derradeira que permanece: #ehtudoIPA???????????

A disputa entre levedura Lager e levedura Ale

No mundo da produção cervejeira, existem dois tipos básicos de levedura (existem outros, sabemos, mas para o propósito do texto, basta falar dos dois principais). São as leveduras do tipo Lager ou as leveduras do tipo Ale.

Os dois tipos de fermentação, mais comuns, são os das leveduras Lager (Saccharomyces pastorianus e ocorre em temperaturas baixas, que ficam entre 5°C e 14°C) e o das leveduras Ale (Saccharomyces cerevisiæ e ocorre em temperaturas mais altas, entre 15º e 25ºC).

As IPA’s, como a própria nomenclatura alude, são do tipo ALE, já que são India Pale ALE. Pelo nome, toda IPA é uma cerveja clara, fermentada em altas temperaturas, ou pelo menos assim deveriam ser. Não obstante, o conceito de Cold IPA subverte um pouco essa lógica cervejeira.

Fermentando uma IPA com levedura Lager ou fermentando uma Ale em baixas temperaturas

As atuais cervejas denominadas como Cold IPA’s subvertem o modelo tradicional de fabricação das India Pale Ale’s (vulgo IPA’s) porque, ou não se valem de uma levedura do tipo Ale, que são larga e historicamente utilizadas em sua produção, ou, em alguns casos, a Cold IPA emprega a levedura Ale, fermentando-a como se fosse uma Lager, a baixas temperaturas.

Porém, não basta simplesmente mudar o tipo de levedura utilizada e manter todo o restante do “esqueleto” da receita de uma IPA, seria como criar um grifo cervejeiro, um corpo de leão (Ale) com a cabeça de uma águia (Lager). Seria o passaporte para o fracasso do produto final.

Tampouco, fazer uma Cold IPA consiste simplesmente no inverso, formular uma receita de uma cerveja que utilize a levedura Lager, exemplificativamente, uma American Lager ou uma Pilsen, e, simplesmente, adicionar uma alta lupulagem (característica de uma boa IPA). O resultado final seria outro Frankenstein cervejeiro, na melhor das hipóteses, teríamos uma Hoppy Lager, ou algo que costumam chamar de IPL, ou India Pale Lager, em contraposição às IPA’s que são Ale’s.

A temperatura na produção de uma Cold IPA

A faixa de temperatura de atuação das leveduras é uma característica própria de cada família, é uma propriedade organoléptica do micro-organismo e que gera resultados sensoriais diversos. Daí que surgem os mais variados estilos cervejeiros, muito em função da levedura que é utilizada, pois cada uma terá inclinações de sabor e aroma próprios e diversos entre si.

Dessa maneira, a temperatura é o gatilho bioquímico para a ativação da atuação microbiológica (ou inativação, a depender do resultado pretendido). A depender da faixa de temperatura utilizada as leveduras estão mais ou menos ativas, e, consequentemente, de modo simplório, estarão produzindo mais ou menos cerveja. Adicionalmente, elas produzirão cervejas com características diferentes de sua faixa própria de atuação.

Aliás, aplicar uma temperatura diversa de sua “propensão natural” (por assim dizer), é a premissa básica da Cold IPA. O próprio étimo em inglês Cold já dá indícios dessa “gambiarra” cervejeira. Cold quer dizer “frio” (ou gelado), e isso indica a temperatura de produção de tais cervejas.

Mudando a temperatura em uma cerveja do tipo Ale

Independentemente do tipo de levedura utilizado na produção da cerveja que se denomina Cold IPA, o mais importante é a temperatura em que ela é fermentada. No caso, a temperatura vai ser baixa, ou fria, utilize ela uma levedura Ale ou Lager.

Fermentar uma Ale, no caso, uma IPA, em temperaturas mais baixas do que o usual traz consequências e resultados bem diversos daquilo que se tem por costume. Isto é, haverá uma menor esterificação da cerveja, de modo que aquele caráter muito frutado de algumas IPA’s tende a ser brutalmente atenuado, dando lugar a nuances de aroma e sabor mais neutros.

Busca-se, com a mudança em relevo, um perfil mais limpo, principalmente no sabor, algo que não seja tão esterificado como se obtém ao utilizar a temperatura convencional para a fermentação de uma IPA.

Claro que nem todas as leveduras da família Ale são aptas a tal mudança no processo produtivo. Algumas cepas são mais flexíveis e se adequam melhor à fermentação em temperaturas mais baixas, ao passo que outras são totalmente desaconselháveis para esse tipo de intervenção cervejeira criativa nos processos de produção.

Fazendo uma IPL e chamando de Cold IPA

Algumas cervejas denominadas de Cold IPA que chegam ao mercado não subvertem a lógica de fermentar uma Ale a baixas temperaturas, apenas se valem da temperatura baixa de fermentação de uma levedura Lager em uma levedura Lager… fazendo, assim, (pasmem!) uma IPL (India Pale Lager).

Nesse caso, chamar uma IPL de Cold IPA é apenas definir o estilo cervejeiro pela lupulagem, em detrimento de se ater ao tipo de levedura utilizada. Pode-se dizer que isso é apenas uma filigrana conceitual cervejeira.

Talvez seja, já que a baixa temperatura do Cold do nome Cold IPA está mantido… contudo, parece algo mais propenso ao marketing que de fato voltado à qualidade do produto. Então, nesse caso, não há grandes diferenças (se é que há alguma) entre uma IPL e uma Cold IPA (feita com Lager).

Tal compreensão advém do entendimento, sensorialmente, o perfil limpo e crispy de uma Lager estará presente, junto com as notas cítricas e resinosas da lupulagem, dando um conjunto bem diferente para quem está acostumado com as IPA’s mais tradicionais e comuns. Tudo isso complementado com um leve perfil metálico, próprio do processo de “lagerização”.

Saideira

Derradeiramente, podemos dizer que é tudo IPA?

Talvez!

Já que vemos, há alguns anos, pelo menos uns 10 a 15 anos, uma forte invasão lupulada em todos os estilos e vertentes cervejeiras. Então, chamar qualquer coisa de IPA não é algo totalmente descabido no cenário cervejeiro artesanal. Pelo contrário, até ajuda no marketing.

Não vai importar muito que seja uma Ale fermentada a baixas temperaturas, ou quiçá uma IPL se passando de IPA, ou, Cold IPA, como queiram, continua sendo tudo IPA. Não existe uma padronização para saber o que é uma Cold IPA, essa é a verdade, se é que esse estilo vai, de fato, consolidar-se… só o tempo dirá (chuto eu que não vai).

Então, para quem gosta, sendo IPA, ou, parecendo ser uma IPA está mais do que ótimo.

Chame-a como quiser, beba-a como quiser. #ehtudoipa mesmo!

Recomendação Musical

Eu realmente não sei qual o nome que deve ser dado às Cold IPA’s… IPL? Hoppy Lager? Cold IPA mesmo? Parece que no final das contas, tanto faz. É tudo IPA…

Daí vem a recomendação musical, mais uma vez com o rapper Lil Nas X, com sua provocativa MONTERO (Call me by Your Name)

Chame-a (cerveja) de qualquer nome, eu diria.

Saúde!


FOTO: publicada no Washington Beer Blog

 

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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