Clauder Arcanjo, escritor e editor de mão cheia, entrega-me três alentados cadernos com recortes de crônicas de Sanderson Negreiros, publicadas em jornais ao longo de alguns anos.
-Explore os veios dessa mina – me diz Clauder.
Coube-me a tarefa de selecionar as crônicas de interesse permanente, isto é, não datadas, para publicação em livro pela Editora Sarau das Letras. Instigante e prazerosa tarefa, logo constatei ao começar a leitura.
Sanderson Negreiros pertence à linhagem dos cronistas-poetas, da qual se sobressaem Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade, em contraposição aos só prosadores, mas não menos importantes – Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, etc.
Tratando-se de um poeta, suas crônicas contêm não apenas poesia diluída em prosa, mas também poesia de mesmo. Vejam a seguir alguns exemplos:
-“Ah ! os relâmpagos ferindo de luz, com seus raios laser luzindo um céu de surpresa, e marcando as cicatrizes do ar puro sertanejo!”
-“Resta-nos olhar a mancha leitosa e espiralada da Via-Láctea que, no céu de outubro, pulsa de beleza, como se fizesse parte do coração de Deus. A pulsação do que é eterno. “
Sobre humana gente:
-“A freirinha do hospital do câncer é suave e mansa. A gente conversa com ela e sente que ela é como as estrelas. Tem luz própria.”
-“A orquestra era de rua, ou ainda: de calçada. Sanfoneiro, o rapaz do zabumba e o menino pandeirista. A calçada era larga, de rua antiga, e por cima de nós a paz da tarde.”
Na crônica “À Maneira do Eclesiastes”, o autor dá lições ricas de sabedoria da vida:
-“Há tempo de viver e tempo de esperar pela vida, pacientemente. Há tempo para lembrar os mortos e tempo para compreender a morte. Há tempo de rir e tempo de fazer que se está rindo. Há tempo de esquecer e tempo de lembrar o esquecimento. Há tempo de pedir e tempo de entender a recusa.” E segue…
Há um tom reflexivo em muitas outras passagens. Por exemplo:
-“Cada minuto é uma riqueza; carrega em seu bojo a novidade do mistério, o imponderável da poesia, a madrugada do melhor sonho.”
-“Todos os dias são dias dos que perderam sua mãe. Quando na infância, perdi a minha mãe, não estava preparado para atravessar o deserto. E o sentimento de orfandade fica no homem adulto com flexível esperança para que se reencontre, permanentemente, no milagre da vida, aquela ternura insubstituível que se conheceu nos primeiros momentos do amor materno.”
Mas, além do lírico e do reflexivo, há lances de humor, como este:
-“… a tarde continua quentíssima. Vou para a esquina da Ribeira libérrima esperando pelo vento da tardinha, lépido e generoso, que desde manhã saiu do Recife e ainda não chegou aqui em Natal. Deve ter sido preso em João Pessoa por subversão.”
Note-se que, então, vivia-se os “anos de chumbo”, e a ditadura militar, a pretexto de combater a corrupção e a subversão, infelicitava o Brasil.
Eis aí uma amostra do cronista-poeta-pensador. Não é admirável ?
Sanderson Negreiros, já consagrado como poeta de primeira linha, é sem dúvidas, um dos maiores cronistas do Brasil, em todos os tempos.
Fazia-se necessário resgatar, para a perenidade do livro, a sua obra dispersa em jornais (Tribuna do Norte e Diário de Natal), exceto aquela já reunida num belo volume pelo escritor Tarcísio Gurgel, sob o título “A Hora da Lua da Tarde” (1998).
Tal como o seu mestre, Câmara Cascudo, Sanderson era um provinciano incurável – provinciano, principalmente, por amar demais a sua terra, onde sempre viveu e de onde não se afastou. Assim, distanciado dos grandes polos culturais do país, ele não teve, como escritor – doí dizer – a projeção nacional que bem merece. É hora de se acabar com essa injustiça.
O Brasil precisa conhecer Sanderson Negreiros.