Documentário expõe as relações cada vez mais perniciosas entre democracia e capitalismo
Se eu disser que existe um plano minuciosamente arquitetado pelos mais ricos para que as riquezas do mundo estejam nas mãos de cada vez menos gente?
Se eu disser que os mais ricos usam de todos os artifícios, do lobby com os políticos à retirada de direitos adquiridos, pra manter você com pouco dinheiro?
Se eu disser que esse plano vem sendo tão bem-sucedido que hoje 1% da população mundial detém a mesma riqueza que os outros 99% restantes?
Tudo isso parece teoria da conspiração, coisa de episódio de Arquivo X, viagem de anticapitalista, mas não é. Trata-se apenas da observação da história da Humanidade e dos rumos que a economia mundial vem tomando.
E essa observação minuciosa foi feita por ninguém menos que Noam Chomsky, premiadíssimo intelectual americano que é hoje um dos pensadores mais importantes do mundo, num documentário certeiro disponível na Netflix.
Noam Chomsky é um dos intelectuais mais importantes dos Estados Unidos. É partidário das lutas populares como forma de ampliar a democracia. Linguista, filósofo, cientista cognitivo, comentarista e ativista político, é conhecido no âmbito acadêmico como “o pai da linguística moderna”. Também é uma das mais renomadas figuras no campo da filosofia analítica.
Analisando a evolução da economia norte-americana, Chomsky mostra em “Requiem for the American Dream” (EUA, 2015) como as relações espúrias entre o meio político e o empresarial vêm minando a democracia e aumentando a concentração de renda.
São análises expostas numa linguagem acessível, sem tecnicismos, com muitos exemplos práticos para compor o que o documentário chama de “10 princípios da concentração de renda e poder”. E é um tiro a cada pensamento.
Uma teoria que explica como chegamos aqui
O documentário acompanhou o pensador durante quatro anos, registrando suas observações sobre os rumos da economia e a deterioração da democracia. Apesar de falar diretamente sobre a política dos EUA, o panorama que Chomsky traça vale para todas as realidades.
A teoria é bem simples — e não contém nenhuma novidade pra quem vem acompanhando as notícias sobre a Lava Jato e as relacões escusas entre políticos e empresas. Segundo Chomsky, os grandes grupos empresariais corrompem políticos para conseguir mais lucro; quando têm mais lucro, corrompem mais políticos; e assim indefinidamente até chegar ao que vemos hoje: 1% da população mundial detém a mesma renda que os outros 99%.
Para embasar sua tese, Chomsky viaja pela história da economia norte-americana, mostrando exemplos incontestes da deterioração da democracia devido ao capitalismo.
Um bom exemplo foi o crescimento da atividade dos lobistas, que nos EUA é uma profissão legalizada — mas nem por isso moral. Os lobistas são pagos para convencer políticos a votar conforme as multinacionais desejam, e os efeitos disso são devastadores: um mundo que na prática é governado pelas megacorporações e não pelo povo.
No fim, o documentário funciona como uma boa resposta para a pergunta do século: “O que está acontecendo?”
Como é possível que alguns tenham tanto dinheiro a ponto de não terem como gastá-lo, enquanto outros morrem de fome? Como é possível que o processo eleitoral se encha de promessas revolucionárias que nunca são postas em prática? Como é possível que o mundo tenha chegado ao ponto que chegou?
Chomsky aponta como única saída possível o ativismo. Segundo ele, somente quando as pessoas se unem e se insurgem contra o Sistema é que conseguem alterações substanciais em suas vidas.
E quando Chomsky fala em “povo”, “mais pobres”, “proletário”, ele não está falando apenas dos que estão abaixo da linha de pobreza. Mesmo que você viva bem, seja empresário, ou concursado, enfim, mesmo que você seja o que consideramos não-pobre, você não faz parte do seleto 1% da população que domina o mundo. Lide com isso.
Ou seja: para as megacorporações, você é tão pobre quanto os 99% do mundo que já citei. E tem que ser controlado, doutrinado e contido para que o plano da concentração de renda e poder siga a todo vapor.
Não se engane, tá? A falsa ilusão de que você tem riqueza e poder é parte do plano. Porque mesmo vivendo melhor que a média, você continua enfrentando problemas que os realmente ricos não enfrentam: violência urbana, serviços públicos ruins, suscetibilidade às inseguranças econômicas, jornadas de trabalho excruciantes etc.
“Requiem for the American Dream” cai como uma luva no Brasil pós-Lava Jato — esse Brasil em que a classe média acha que é rica e trata os pobres como escória. E é por isso que o documentário é obrigatório: para entendermos onde estamos, e também para onde vamos, é imprescindível que compreendamos como chegamos até esse ponto.
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Eis um trechinho que catei no YouTube pra dar o gostinho do que te espera:
DE ZERO A DEZ: ★★★★★★★★★✩
Requiem for the American Dream (EUA, 2015)
Direção: Kelly Nyks, Jared P. Scott
Elenco: Noam Chomsky
Duração: 1h18min.
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BÔNUS: 10 PRINCÍPIOS DA CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZA E PODER
Pra quem se interessou, mas ainda está em dúvida, vou fazer um resumo dos 10 princípios chomskyanos para a concentração de riqueza e poder. Não substitui o documentário, mas vai dar uma instigada em você.
1.Reduzir a democracia:
Concentração do poder político na mão dos mais ricos, para que as decisões privilegiem quem já tem muito dinheiro.
2. Moldar as ideologias:
Afastar os mais jovem da política através de instrumentos como a mídia e a escola, por exemplo. Alguém pensou no Escola Sem Partido?
3. Redesenhar a economia:
O mercado financeiro é uma invenção recente e redesenhou a economia. Antes baseada em produção, agora baseada em lucro. Ou seja, quem tem muito dinheiro ganha mais dinheiro sempre.
4. Deslocar o fardo da sociedade para os mais pobres:
O sistema é pensado para dividir o prejuízo entre os mais pobres e o lucro entre os mais ricos. Na prática, os mais pobres sustentam os mais ricos. Sabe o pato da Fiesp?
5. Atacar a solideriedade:
A cultura do eu, típica do capitalismo, afasta as pessoas umas das outras. Isso gera a diminuição dos levantes populares e, consequentemente, mina o poder dos mais pobres.
6. Dominar os reguladores:
A regulação do Governo precisa ser dominada, para que aja a favor de quem está sendo regulado. Por exemplo, parlamentares têm suas campanhas financiadas por corporações e depois criam leis que são benéficas apenas a essas corporações. #LavaJatoFeelings
7. Controlar as eleições:
Através do poder econômico, as corporações elegem quem querem e retiram do poder quem não querem. Dilma, algo a dizer a respeito?
8. Manter a ralé na linha:
Dar insegurança econômica através de poucos direitos trabalhistas é uma forma de manter o povo com a bola baixa. Parece que Temer viu esse documentário, hein!
9. Fabricar consensos criando consumidores:
A tal sociedade de consumo, basicamente, é isso — desejos doutrinados. Você quer uma vida melhor e até pensa em lutar por isso, mas aí vai no shopping, compra uma smartTV e essas ideias esquerdistas somem magicamente.
10. Marginalizar populações:
Sabe aquela história “Brasil, ame-o ou deixe-o”? Pois bem, o lema da Ditadura de 1964 é a marginalização da população em sua essência: se você se insurge contra o Sistema, você é tratado como ameaça. E extirpado. Lembrou dos blackblocs?
Veja uma lista mais detalhada AQUI.
É óbvio que minha lista parca não chega aos pés da genialidade com que Chomsky expôe seus pontos de vista no documentário. Então não se dê por satisfeito. Busque essa horinha de elevação intelectual na sua Netflix.
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Bônus 2: E a concentração de riqueza no Brasil, como está?
“Jorge Paulo Lemann (AB Inbev), Joseph Safra (Banco Safra), Marcel Hermmann Telles (AB Inbev), Carlos Alberto Sicupira (AB Inbev), Eduardo Saverin (Facebook) e Ermirio Pereira de Moraes (Grupo Votorantim) são as seis pessoas mais ricas do Brasil. Eles concentram, juntos, a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres do país, ou seja, a metade da população brasileira (207,7 milhões).”
“As desigualdades social e de gênero se acentuaram no Brasil. Esse é o diagnóstico revelado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento(PNUD), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com dados de 2015, divulgado nesta terça-feira. O país ocupa o 79º lugar entre 188 nações no ranking de IDH, que leva em conta indicadores de educação, renda e saúde, mas despencou 19 posições na classificação correspondente à diferença entre ricos e pobres.”