Carta de Racine Santos para Manoel Onofre Jr

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Natal, 06 junho de 2023

Meu caro amigo,

Escrevo para comunicar, a você que também pertence à geração perdida, o triste fim de Policarpo Quaresma. Coitado, foi vítima de um inimigo do povo: a peste. Mas a vida é assim. Lembra-se da morte de Ivan Ilitch? Desse quem me deu tais notícias foi o primo Basílio, aquele conhecido como o jogador. É verdade que havia entre eles relações perigosas? Não sei. Só sei que foi pior que o crime do padre Amaro, pois este foi entre quatro paredes. Quem me contou tudo foi o noviço, aquele da família dos Maias e que está escrevendo o memorial do convento. Afirma ele que tudo aconteceu depois dos sermões do padre Antônio Vieira, conforme o processo instaurado para analisar crime e castigo. Só não me falou da morte de Artêmio Cruz. Essa morte em Veneza, que soube pelos jornais, dizem que foi uma coisa brutal, a sangue-frio. É, amigo, assim caminha a humanidade, não é? Acho que para dar conta de tudo isso só mesmo escrevendo o livro do desassossego.

Por isso, e cansado de ilusões perdidas, resolvi fazer uma viagem aos sertões de minha infância. Assim visitei Currais Novos, a cidade e as serras. Como estava muito quente, a viagem tornou-se para mim uma temporada no inferno, parecia que estava fazendo uma viagem ao centro da terra. Por aqui parece que até os deuses têm sede. Mas, em compensação, reencontrei os amigos, e não vi os inimigos. Tenho a impressão que eles deram adeus às armas. Para minha alegria, vi o sertanejo e aquela mulher de 30 anos (lembra-se dela?, foi quem me ensinou a arte de amar). Depois me encontrei com Quincas Borba e aquele velhinho que a gente chamava de pai Goriot. Para minha grande alegria, me levaram para almoçar: um banquete. Senti-me um Rei Lear. (Sem as filhas, claro). Para minha surpresa, vejo que chegam, sem avisar, Iracema, aquela moreninha amiga dela, a senhorita Júlia . Pareciam três irmãs. Disseram que tinham ido consolar a viuvinha. Aquele que o marido teve um encontro com a morte. Fazer o quê? é a condição humana. Todos os homens são mortais. Perguntei pela família de Pascual Duarte, mas ninguém me deu notícias.

Senti falta de Cândido. Lembra? aquele não é mais otimista por que é um só. Disseram-me que havia se tornado pintor, e estava pintando o retrato de Dorian Gray, aquele avarento que todos nós conhecemos. Logo ele, um sujeito de bom coração e que não faz diferença entre o príncipe e o mendigo. Sai daquela reunião, já no finalzinho da tarde, acompanhado do Moleque Ricardo, aquele que todos dizem que foi um menino de engenho. E fomos para um bar chamado O Cortiço.

Ali também havia muita gente, e a conversa na calçada foi uma maravilha. Falava-se de tudo, até de guerra e paz, de cangaceiros, mas eram todos simplesmente humanos. Interessante foi que no meio do bate papo apareceu o estrangeiro. Aquele que todos dizem que é um americano feliz. E ele caiu gargalhando quando Sidarta começou a contar as pelejas de Ojuara, deixando todos a bolar de rir. Já havia escurecido quando deixamos aquela reduto.

Suave é a noite, dizia meu companheiro e perguntava se eu queria ir para a casa de Bernarda Alba, para a ilustre casa de Ramires ou para a pensão de Tellier. Decidi pela terceira, um lugar onde não se vê orgulho e preconceito nem arde a fogueira das vaidades. Mas também não é um santuário.

Feito os pastores da noite, seguimos para aquela tenda dos milagres, onde tudo pode acontecer, inclusive nada. Eu queria viver um sonho de uma noite de verão, então embarcamos em um bonde chamado desejo. Mas, ao chegarmos, não vi Lolita, meu sonho de juventude, que tem a rosa tatuada no braço. Para minha surpresa, recebi a visita de uma velha senhora, que parecia estar ali em busca do tempo perdido. Parecia uma bola de sebo. Para mim foi o fim do jogo. Tentando ser o homem invisível, eu e meu amigo passamos a noite apenas bebendo, feito os miseráveis, como se estivéssemos esperando Godot ou à espera de um milagre. Foi quando, de repente, apareceu Eneida que, como todas as mulheres apaixonadas, me fez ir além do horizonte.

Como o sol também se levanta, no fim da noite deixei aquela casa de prazeres. Na rua, pensando em escrever cem sonetos de amor, vejo Orlando furioso. Vinha acompanhado de cinco outros arruaceiros. Era ver seis personagens a procura de um autor. Falavam alto. Pensei: “os cães ladram”. Mas logo percebi que era muito barulho para nada. E segui em frente. Afinal, a vida é sonho. Depois de tantas aventuras, pensei na volta ao lar.

Meu caro, recomendações a todos, e, principalmente, a turma do Atheneu. E por aqui fico, nessa província submersa como se estivesse no coração das trevas. Agora, enfrentando o desafio das palavras, vou escrever cartas a um jovem poeta. Ou, quem sabe, o diário de um louco?

Do amigo quer, apesar de todas essas andanças, vive como se vivesse cem anos de solidão.

ps: Ainda bem que existe a biblioteca e seus habitantes.

 

Racine Santos

Manoel Onofre Jr.

Manoel Onofre Jr.

Desembargador aposentado, pesquisador e escritor. Autor de “Chão dos Simples”, “Ficcionistas Potiguares”, “Contistas Potiguares” e outros livros. Ocupa a cadeira nº 5 da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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