Preço de cerveja artesanal: o justo, o barato (e o hypado)

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Olá, nobres cervejeiros, saudações!

Vamos tecer alguns breves comentários hoje sobre um tema que eu adoro falar: o preço de cervejas artesanais.

De um modo geral, para um país miserável como o nosso, se dar ao luxo de beber cerveja (até mesmo as de massa) em detrimento de algo mais barato e que forneça algum torpor alcoólico, como aguardente (conhaque de alcatrão, ou qualquer outro destilado de baixa qualidade vendido a preços acessíveis até aos menos abastados). Neste cenário, beber cerveja já é alguma coisa.

O quadro se agrava ainda mais quando se tem acesso a um bem de consumo ainda mais elitizado, que é a cerveja artesanal. E esta é uma verdade inarredável: o público cervejeiro artesanal é composto pelas classes “A e B”, ainda que, na prática, essa estratificação seja ilusória, pois o que há são apenas “senhores e escravos”, diria Hegel na Fenomenologia do Espírito.

Ademais, nem sempre, capital econômico se converte em capital cultural (quem nunca viu Neymar colocando gelo em um Black Label, não é mesmo?), mas, de certa forma, requer-se algum poder aquisitivo minimamente maior para se consumir cervejas artesanais.

Todavia, o ponto central do debate de hoje será sobre os preços atualmente praticados no mercado, e até que ponto eles são baratos, até que ponto são justos, e também, até que ponto eles podem ser os dois: baratos e justos. Já que ambos os conceitos não são necessariamente equivalentes (na verdade, não são).

O que é um preço justo? E o que seria uma cerveja artesanal “barata”? Ela sequer existe? Onde o hype entra nesta equação?

O justo…

Não vou trazer mil teorias da justiça, nem teorizar muito a respeito do que seria o justo no cotidiano. Tampouco, vou fazer a dissociação “técnica” entre “valor” e “preço”, pois ela apenas favorece a quem quer cobrar mais caro pelo que se está sendo vendido.

Mas, de alguma forma, ao se falar de formação de preços e de mercados (ou melhor, de nichos bem específicos no mercado – cervejeiro, por exemplo), é necessário levar em conta muitos fatores.

O primeiro deles é que, quer queira quer não, estamos em uma sociedade capitalista (por pouco tempo, diriam os detratores, né? Porque o fantasma do comunismo já bate à porta… o STF já liberou: alguém ouviu aí #Lula2022? Sim ou com certeza?), na qual se aceita sempre pagar por algo, desde que se ache “justa” a oferta.

Certamente, este é o preceito básico da economia capitalista, se há a transação comercial, ela foi justa, já que ninguém foi coagido ou impingido a fazê-la. E se houve qualquer sorte de coação ou de assédio na transação comercial ela pode ser anulada (juridicamente falando).

O ponto certamente não é discutir as bases do capitalismo hodierno, e sim se adequar à popular expressão do “preço justo”. Quando falamos que algo tem essa qualidade do “preço justo” não estamos dizendo que simplesmente concordamos em pagar por aquilo. Se fosse assim, ninguém abasteceria o carro com o litro da gasolina custando 6 mitos, não é?

Então, o simples fato cotidiano e corriqueiro de simplesmente concordar em pagar por algo não confere “justiça” ao preço praticado. Mas, podem arguir que, diferentemente da gasolina, a cerveja artesanal não é um bem de consumo básico e inadiável (ou consumer Staples, diriam os traders de plantão). Tal ponto é verdadeiro, e isto nos faz adentrar em outro elemento da precificação cervejeira, que é a sua “escassez” e seu “prestígio”.

Muitos dos iniciantes no mundo das artesanais nem sempre se aventuram porque de fato gostam das cervejas. Por vezes é por tentar adquirir um “status” que não se obtém mais com as cervejas triviais. Foi-se o tempo que ter uma Skol ou uma Heineken na mesa de um bar soaria como “diferencial”.

Através de amizades e de conhecidos, passa-se a consumir um produto cervejeiro de “melhor qualidade” para se obter mais “status”. O problema é que a busca por cervejas melhores não se atrela ao conhecimento cultural cervejeiro.

Eu tive a prova cabal tal exposição quando um ser caricato, exibido e metido a conhecedor tomou uma lata de Guinness e no final de sua “análise sensorial” bradou: “cítrica”. Tirando o elemento teratológico e tragicômico deste caso, denota-se que, por vezes, a entrada no mundo das artesanais ocorre não porque se acha que o preço pago nas cervejas especiais seja “justo”, pelo contrário, a entrada neste universo, às vezes, dá-se pelo fato de o preço ser mais elevado (e talvez “injusto”), e por causa disto alguns procuram as tais cervejas “diferenciadas”.

Ou seja, o justo e o injusto transitam lado a lado nas esferas de preço cervejeiras.

…O barato (ou o que não é caro)

O critério de precificação para que uma cerveja artesanal seja barata é algo bem raro, talvez aconteça igual a passagem do cometa Halley (tecnicamente 1P/Halley, cometa periódico, visível na Terra a cada 75/76 anos). Soa inaceitável dizer que uma cerveja artesanal é barata se ela custa mais de 20 reais a garrafa e o salário mínimo em 2021 é pouco mais de 1.000 triplex (1.100 lava-jatos para ser mais específico).

Pode-se até argumentar que este valor é justo, mas dizer que é barato desafia a lógica do próprio mercado o qual impõe ao pagar tal valor irrisório como “mínimo”.

Falar que uma cerveja artesanal está barata apenas parece aceitável em raras ocasiões, e eu posso listar alguma delas: promoções especiais de verdade (como algumas situações de Black Friday), quando as lojas estão para fechar suas portas (e concedem descontos para queimar o estoque mesmo) ou quando há algum erro na determinação da validade da cerveja, e ela precisa ser vendida legalmente antes de expirar (e então descontos generosos precisam ser aplicados para que o estoque não fique “encalhado” e a cerveja “vencida”).

Tirando alguns raros eventos, que demandam algumas confluências astrais incomuns aos meros mortais, é raro que uma cerveja possa vir a ser classificada como “barata”. Nas demais ocasiões em que seu preço está mais baixo que o normal, mas mesmo assim os descontos não são de uma magnitude estonteante. O que se tem é aquilo que trivialmente pode ser dito como “preço justo”.

Desta maneira, podemos chegar à breve conclusão que um preço barato de verdade será necessariamente um preço justo, pois raramente se estará falando em “prejuízo” real para qualquer uma das partes da cadeia produtiva. Cada um sabe a margem que coloca, e nenhum deles está para brincadeira. O mercado (ente metafísico que nos rege) é eficiente e só os bons sobrevivem (ou, pelo menos essa é a lógica que Mammon nos prega). Assim, o que não é caro, para o mundo da cervejas artesanais, já pode ser considerado barato.

Todavia, caso haja um desconto relativamente substancial, já pode-se falar em “preço justo”. Que seria uma categoria acima do “barato”, pois, de alguma forma, ainda é bem caro e inacessível para a maior parte da população que sobrevive com os dígitos expostos como mínimos.

The Good, The Bad and the Ugly[1] (ou, o barato, o justo e o hypado)

O barato é raro, raríssimo, e portanto, sempre é justo em si mesmo, ou seja, aquilo que é barato já é tido automaticamente como sendo dotado de “um preço justo”.

Já o “preço justo” é uma construção mental subjetiva bastante variável, até é passível de ocorrer com uma maior recorrência, e algumas cervejarias locais conseguem atingir tal façanha (“dai a César o que é de César”), todavia, sempre vivemos à espreita do fantasma do hype (clique aqui para relembrar o que é isso).

O preço justo não flerta com o barato, primeiro porque o barato é raro, e secundariamente porque o que é barato já se encontra abarcado pelo valor justo pelo que é pago, de modo que injusto só seria o valor daquilo que é furtado ou roubado, daí já transpomos o limiar da negociação para adentrar nos limites da moralidade, da ética e da legalidade. Então, o grande embate é centrado entre o preço justo e o preço exorbitantemente imposto pelo hype.

O problema é que nesta batalha hercúlea os players do mercado (ou seja, as cervejarias) se guiam pelos valores impostos por aqueles que ditam as regras do que deve ser tido como o ápice produtivo, daí a ocorrência do hype.

O hype não é uma simples imposição de um valor acima do preço justo, ele é a atribuição fictícia e estratosférica de uma realidade que uns poucos aceitam pagar pelo simples frenesi da exclusividade. Claro que o hype suplanta o que é justo, aliás, não existe justiça no hype, ele é sempre guiado pela injustiça e pela percepção subjetiva distorcida de um valor irreal.

Deste modo, hype e preço justo não caminham na mesma expressão de valor, o hype modula os preços para um patamar da fetichização da mercadoria, os beer geeks sempre pagarão caro porque o que é hypado é caro, logo, é bom. Nesta espiral ilusória inexiste critério de “preço justo”, existe apenas o alto preço, o sangue do consumidor a ser vertido no altar de Mammon, para que as quantias elevadas sirvam de ordália (ou judicium Dei) aos deuses do mercado.

Claro que todas (ou quase todas) faixas de precificação são encontradas. Há cervejas artesanais baratas (é raro, mas se você souber garimpar, talvez você ache), há cervejas artesanais a preços justos (as locais são sempre uma boa expressão deste limiar do “preço justo”) e também há o hypado, aquilo que você olha, pensa na sua conta bancária, você deseja (porque Mammon é um “deus” ardiloso e te seduz com NEIPAS altamente “juicies”, artes belíssimas nas latas e descrições marqueteiras fortemente lupuladas), você pensa mais uma vez, vê o quão absurdo aquilo é, e se for uma pessoa comedida, acaba desistindo, pois acaba sopesando o “preço justo” em detrimento da irrealidade do hype.

Saideira

Falar de preços e de cervejas é algo que sempre suscita polêmicas. Há quem impute ao “preço justo” uma mera construção mental subjetiva de que “se aceitou pagar é justo”, o que não é bem o caso pelos argumentos já expostos.

Ademais, a questão do “ser barato” no mundo cervejeiro é algo que de tão raro, há quem cite o Padre Quevedo (que Deus o tenha) para dizer que “isso non ecziste” – mas, existem moscas mortas, basta procurar bem por elas.

Eu não nego a existência de cervejas artesanais no patamar do “barato”, mas admito que é algo de uma raridade singular. Já o hype, é igual o golpe, está ai, cai quem quer (e quem cair não venha reclamar, pois há tempos que falo dele, sim, “the hype is real”).

Derradeiramente, apenas recomendo cautela e perseverança, garimpem o barato, foquem no justo e fujam do hypado. Esta é dica de hoje.

Música para degustação

Já que o barato é raro de ser encontrado, e do hypado devemos fugir como o diabo foge da cruz, só nos resta desejar …and Justice for All, um clássico do álbum homônimo do Metallica! Nada mais justo que se almejar o justo através de uma sonoridade crua e visceral (quem conseguir ouvir o som do baixo do Jason Newsted me avisa, talkei?) dos mestres do Thrash Metal oitentista.

Saúde!!


[1] Título original do filme Três homens e um destino. Um dos clássicos do gênero de faroeste, estrelado por Clint Eastwood.

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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